Recebi um elogio por esses
dias. Vindo de quem veio e dada a importância dessa pessoa em minha vida, de
certo que é mais do que um elogio. Além disso, a típica franqueza da pessoa, franqueza
por vezes ácida, quando necessário, me deixou obviamente lisonjeado, pois sabia
que não era algo para me bajular. Porém,
o que foi falado gerou em mim uma dúvida. Se não uma grande dúvida, ao menos algo
que me fez refletir nas horas de sobra que se tem quando se está cuidando de
uma pessoa doente durante a noite.
Explico. Disse-me essa pessoa
que admirava a minha capacidade de relacionar coisas aparentemente díspares,
especialmente ao escrever os textos desse blog, tal como unir um filme com a
passagem de um livro com o trecho de uma poesia e tudo isso associando a um
caso na Rússia.
Caso na Rússia?!?!?!
Confesso que na distração
causada pela colocação feita, quase bati com o carro (estava ao volante). A
pessoa riu e disse que era apenas um exemplo. Menos mal, porque por mais que eu
tentasse eu não conseguia lembrar se havia escrito sobre algo que pudesse ter,
ainda que levemente, alguma conotação, digamos, russa.
Mas e onde entra a dúvida?
Fiquei me perguntando se seria mesmo capaz de fazer relação tão esdrúxula em um
texto e me propus, quase que num auto-desafio, a tentar escrever uma postagem
(essa!) ligando filme, livro, poesia e... caso na Rússia.
Enquanto escrevo sinto o calor
que se instalou definitivamente nas últimas semanas por essas bandas. Para
dormir, já faz alguns dias que uma pequena garrafinha com água fica ao meu lado
para, acreditem, molhar os lençóis e travesseiros na tentativa quase estéril de
diminuir a sensação de "sauna particular" com que vem se confundindo a minha cama.
Ironicamente, a Internet
apresenta a Europa como tendo um dos mais rigorosos invernos dos últimos anos.
Na noite anterior, a temperatura na Rússia chegou a 34 graus... NEGATIVOS!
Movido por mera curiosidade dei uma pesquisada no google e descobri que a temperatura interna dos nossos freezers é de 10 graus negativos em média.
Ou seja, o inverno por lá está russo (trocadilho infame!). São 24 graus
negativos a mais do que o congelador de casa.
Enquanto eu aqui reclamo do
calor, eles lá, certamente reclamam do frio excessivo. Moramos na mesma
nave-mãe, o planeta Terra, que nos permite viajar neste universo, e estamos
sujeitos a sensações tão opostas, porém sempre passageiras. Embora seja muito
improvável que tenhamos aqui um inverno tão russo, e por lá um verão tão
causticante, sabemos que isso tudo vai passar.
Sim, uma hora o calor deixa de
ser tão quente e o frio deixa de ser tão congelante. Na verdade tudo na vida passa
(dá até pra associar ao texto uma piada, ainda que dessas meio sem graça, onde
um dito popular é complementado: "tudo na vida é passageiro, exceto o
cobrador - ou trocador - e o motorista).
Isso me veio a mente, porque por esses dias me deparei com um livrinho de contos onde constava uma
fábula sufi em que um rei pede a seus
sábios uma frase de no máximo três palavras que ele possa usar gravada no seu
novo anel de diamantes, de modo a que, ao ler a frase, essa possa lhe ajudar
nos piores e nos melhores momentos. Os sábios nessas horas acabam travando por
não terem a capacidade de síntese dos poetas e um velho amigo do pai do rei, um
trovador, um poeta, sugere a frase "isso tudo passará!".
Assim, quando o rei um dia se
viu em desespero após a tomada do seu reino por bárbaros, olhou para o anel e
refletiu sobre o conteúdo nele gravado e, mais calmo percebeu que tudo aquilo
passaria, como de fato passou. Ele reorganizou seus pensamentos e isso o ajudou
a reorganizar suas estratégias que, por sua vez, ajudaram a reorganizar seu
exército e seus mantimentos. Assim, conseguiu expulsar os inimigos e foi recebido
em carro aberto pelo povo do reino que entusiasticamente saudava a competência
da liderança real. Isso o deixou em êxtase e quando se encontrava no ápice
dessa sensação viu em meio à multidão o velho trovador, amigo de seu pai, que
por meio de gestos lhe pediu para ler novamente o que estava gravado no anel. O
Rei achou estranho aquele pedido, mas meio que reflexivamente e confuso olhou
para o anel e leu "isso tudo passará!". E realmente o momento de
glória diluiu-se no cotidiano do reino, passando o povo, pouco tempo depois, a
clamar de forma contundente por políticas públicas mais eficazes durante a
gestão do rei.
Coincidentemente, o Osho
comenta esse conto e sugere que pensemos sobre ele intensamente, sempre, dia
após dia, buscando tirar reflexões, segundo ele, são fartas, a partir dessas,
aparentemente simples, palavras. Minha reflexão de hoje foi a de que, pensando
assim, acabamos por nos permitir um pouco mais de autonomia na condução de
nossas vidas.
Se nos momentos ruins,
reconhecermos que tudo aquilo será passado em breve, esse "breve"
tende a chegar mais rápido pois nos traz a possibilidade do novo dia, e assim
mais relaxados, conseguimos força para reorganizar nossas vidas. Do mesmo modo,
pensar que tudo passa quando estamos vivendo um momento bom, nos ajuda, quando
encaramos de modo positivo, a aproveitar cada instante desse momento, sem
desperdiçar nosso tempo com aquilo que não constrói. Passamos, portanto, a
viver mais intensamente e em não raras vezes, viver intensamente é a melhor
maneira de viver mais e melhor, prolongando ao máximo a "vida" que
nos é oferecida a cada nascer do sol.
Como na música do Legião
Urbana, "temos todo o tempo do mundo, todos os dias, antes de dormir,
lembro e esqueço como foi o dia..." Pois é, talvez precisemos mesmo a cada
dia, exercitar esse lembrar e esquecer, de modo que cada novo dia seja um
recomeço, que tenhamos o ânimo de uma criança para (re)descobrir o mundo a cada
dia, como no lindo filme "como se fosse a primeira vez" onde o
personagem do Adam Sandler tem a cada dia que fazer com que a personagem da
Drew Barrymore se apaixone por ela, já que toda noite, devido a um acidente
anos antes, ela apaga da memória todo o dia vivido.
Contudo é bom nunca esquecer de
que é preciso estar sempre em movimento, não adianta ficar parado. O "isto
tudo passará" serve apenas como uma catalisador. É preciso fazer nossa
parte, como na estória (sim, como o Rubem Alves, acho necessária a diferença
entre estória e história, ainda que a gramática tenha aposentado a primeira
versão) que diz que todos os dias amanhece na selva africana e a gazela precisa
correr mais rápido que o leão para não ser devorada e o leão correr mais rápido
que a gazela para não morrer de fome, de modo que, como moral da estória, não
importa se somos como os leões ou como as gazelas, quando o dia amanhecer temos
que começar a correr se quisermos sobreviver.
Enquanto escrevo o sol já vai
ficando alto, o que significa que é preciso aproveitar esse novo dia, essa nova
manhã de domingo, seja ela portadora de bons momentos ou de dificuldades
relativas, pois isso tudo passará.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário, sua sugestão, sua crítica!