Quem me conhece sabe que em termos de torcida meu coração se
divide entre o vermelho e branco do Clube Náutico Capibaribe e o azul e branco
da Portela, escola de samba carioca. Esta noite descobri que o enredo da
Portela para o ano que vem irá versar sobre a história da própria escola a
partir do bairro de Madureira (a Portela fica entre os bairros cariocas de Oswaldo
Cruz e de Madureira). O carnavalesco, que neste ano teve a feliz ideia de
trazer a eterna portelense Clara Nunes como o fio condutor do enredo sobre a
Bahia, que deu novamente à Portela, uma cara de Portela, vai utilizar o grande
Paulinho da Viola, no ano em que ele completa seus 70 anos, como o fio condutor
da vez, a partir de sua belíssima música “foi um rio que passou em minha vida”,
que se tornou um quase-hino da Portela, cantado sempre nos “esquentas” antes da
escola entrar na avenida. (Quem quiser conferir essa maravilhosa canção na voz
mansa e contagiante de Paulinho da Viola, basta clicar AQUI).
Tempos atrás, assistindo uma entrevista do Paulinho da
Viola, ele explicava de onde surgiu a inspiração para escrever “foi um rio que
passou em minha vida”. Ele, mesmo sendo um portelense apaixonado, compôs junto
com Hermínio Bello de Carvalho a música “sei lá Mangueira”, que era uma
homenagem à outra tradicionalíssima escola de samba carioca, a verde-rosa
Estação Primeira de Mangueira. Ao contrário do que muitos pensam, a rivalidade
entre as escolas não é como no futebol e o que existe de concorrência entre elas
acaba surgindo muito mais da forma de competição baseada em julgadores
duvidosos que dão notas aos décimos e premiam mais o “carnaval-aparência” do
que o “carnaval-chão", do que mesmo por uma “guerra” entre co-irmãs, mas
isso é assunto para outra postagem.
Porém, é certo que um pouco de ciúme foi despertado entre
alguns portelenses, quando Paulinho, já ícone da escola, escreveu esse samba
para a Mangueira, sem ter escrito nenhum para a Portela. A situação para o
Paulinho se complicou quando a música de exaltação à Mangueira fez muito
sucesso e ele se viu meio que na obrigação de fazer algo ainda melhor para a
sua amada Portela. O processo de criação é sempre algo difícil de explicar, e
Paulinho conta que, buscando inspiração para compor um samba à Portela passou
por um letreiro que continha a seguinte pergunta: “por onde tem andado seu
coração?” E a música saiu como que em resposta a essa pergunta, tanto que “foi
um rio que passou em minha vida” começa com “Se um dia, meu coração for consultado...”
Em meio à sua “resposta”, Paulinho da Viola, confessa que
seu “coração tem mania de amor”. Seria tão interessante que a humanidade
tivesse essa estranha mania de amar, em todos os sentidos, do fraterno ao
erótico, do paterno ao comportamental, do materno ao caridoso. Do amor por um
homem ou uma mulher, por uma música, por um filme, por uma poesia, por um
animal de estimação. Certamente o mundo seria um lugar muito melhor. Amores que
podem apagar, como na música, “a marca dos [...] desenganos” nossos de cada
dia.
Não sei se o trecho “o samba trazendo alvorada, meu coração
conquistou”, desperta em outros portelenses, como desperta em mim, o saudosismo
dos desfiles que a Portela encerrava com o raiar do dia, coroando uma noite de
tantas luzes e cores com a luz suprema do sol que com seus raios dava mais vida
a cor azul que inundava a avenida como que um rio passando por nossa vida,
fazendo nosso coração querer se deixar levar... (#cantarolandoamúsica)
E pensar que a poesia da música começa com esse “por onde
tem andado seu coração?”... Pensando bem, talvez toda a poesia da vida surja a
partir dessa pergunta. A própria criação do mundo parece ser a resposta de Deus
ao seu “por onde tem andado seu coração?” No prólogo de São João, o mundo era
sem vida, sem luz, e o verbo, a palavra, o sonho se fez carne. Éramos um sonho
na cabeça de Deus como bem já citava Berkeley, o filósofo, e esse sonho se
tornou realidade mostrando assim que a humanidade é o coração da ação divina, é
a finalidade de tudo que nos cerca, é a declaração de amor de um Deus
apaixonado, que se preocupa com cada fio de cabelo que nos cai, que se preocupa
verdadeiramente conosco e que nos ensina que amar é preocupar-se também com
cada fio de cabelo caído do próximo, com sua dor, sua decepção, sua tristeza, sua
dúvida, seu sacrifício, seu sofrimento. Enquanto não formos capazes de sermos
solidários na dor, como diz a música do Paulinho, “será difícil negar” que nosso
coração continuará andando errado.
Que nossa prece seja para que possamos responder ao nosso “por
onde tem andado seu coração?” com uma resposta de solidariedade, de preocupação
autêntica com o próximo, enfim, com uma resposta de amor, nos deixando levar
pela alegria de fazer parte da vida de outra pessoa, também e principalmente,
nos momentos em que ela mais precisar de nós.
#laiá-laiá-laiá...