domingo, 3 de julho de 2011

“Não Tivesse Infância Não?”

De cá pra lá, idas e vindas de Caruaru, rádio por companhia. Dia do caminhoneiro anunciava o Radar da Nova Brasil. Em homenagem aos profissionais da estrada tocam “Frete”, composição do Renato Teixeira imortalizada como tema da série Carga Pesada. Aos primeiros acordes da música me vêm imagens da infância. Não, nunca quis ser caminhoneiro, quis até ser mágico e bombeiro, mas caminhoneiro não. As imagens que me vêm à mente têm mais a ver com a série que passava no início das tardes de domingo. Coincidia quase sempre com o horário de almoço, almoço de domingo. Feijão do dia, arroz, um pouco de farofa e a galinha assada ao forno que minha mãe fazia. Os sentidos se misturam, audição e paladar se confundem, difícil distinguir essas marcas que a gente leva na memória, memória que enquanto palavra etmologicamente deriva exatamente de marca. Dirijo um bom tempo com a imagem na memória. Mas é preciso voltar a atenção para a estrada e para a noite de trabalho que há por vir.

Depois da noite de trabalho, hora de comer pizza com amigos. Falam de bicicleta e eu digo que nunca aprendi a andar de bicicleta. A reação é sempre previsível, um E.T. ao vivo e em cores talvez causasse menos espanto. Aí vem a frase de sempre: “não tivesse infância não?”. Para ajudar na tese criativa de que eu não tive infância ainda completo: “pois é, não aprendi a andar de bicicleta; nunca quebrei perna e nem braço e nem nada; nunca era escolhido para jogar nas peladas da vida e quando conseguia entrar num dos times o meu time podia jogar com um a mais já que eu era “café com leite”, expressão que aqui significa algo como “é mesmo que nada”; não aprendi a rodar pião; não sabia empinar pipa; sempre perdia na bola de gude; não passava trote; não tocava a campanhia do vizinho e saia correndo.” Assim, satisfeitas em verem corroboradas as suas teorias quanto o meu suposto nascimento nascimento já como adolescente, acabam me deixando em paz.

Mas a despeito dessas conclusões, eu tive infância sim. Brincava muito com meus irmãos, virava a casa toda, transformava e o quarto no que quer que quisesse, assistia muita TV e aprendi logo cedo a entender as horas em relógio de ponteiro e os dias da semana para saber exatamente o que passaria na TV em cada horário e dia da semana. Era fã do Sítio do Picapau Amarelo e do Balão Mágico. Desse último tinha todos os discos. Ajudava minha mãe a arrumar a casa que eu mesmo tinha revirado e era quem mais ficava na lojinha que havia em casa para meus pais ganharem algum trocado extra para ajudar a criar a mim e aos meus irmãos. Nas sextas-feiras era dia de ir ao centro e passar no trabalho de meu pai. Gostava de estudar, de ler e de ouvir histórias. Gostava que meu pai penteasse meu cabelo da forma desajeitada que só ele tinha e de conversar com minha mãe. Adorava desmontar os brinquedos para ver como funcionavam e mais ainda ver meu pai consertá-los, deixando-o funcionando de novo, mas cheio de fita adesiva e com meia dúzia de peças “desnecessárias” sobrando depois da remontagem. Gostava de quebra-cabeças, jogos de montar, e de brincar em família de “nome, lugar, objeto”, joguinho que se sorteava uma letra e tinha-se que colocar nomes de pessoas, de lugares, de objetos, de cores, de filmes e o do escambau, que começassem com aquela letra. Adorava também brincar de forca, fazer caça-palavras de revistas e morria de vontade de completar uma página de palavras cruzadas como minha mãe fazia. Certamente o amor pelas palavras começou com esses jogos que minha mãe sabiamente nos estimulava a jogar. Difícil era ganhar dela. Quando comecei a ganhar ela parou de jogar, dizendo que agora eu já estava pronto. Sem graça ela! Gostava de viajar pra casa de meus avós e brincar com as dúzias de primos que tenho. Povo do interior tinha muitos filhos antigamente. Gostava de balanço no parque e de balançar na rede em casa. Nessas horas era bom olhar o céu e pensar sobre toda a sorte de coisas. Na escola tive agência de detetives e era sempre vitorioso na disputa interna de quem copiava mais rápido o que as professoras escreviam no quadro, para abuso de minha mãe que ficava horrorizada com a minha letra ruim, de pressa. Era aluno comportado, mas muito observador. Gostava de fazer a tarefa de casa ainda na escola esperando a condução, para não precisar ter trabalho em casa. Adorava estudar, mas não em casa. Cada coisa no seu devido lugar.  E gostava dos almoços de domingo, ao som da trilha sonora do Carga Pesada, que quem quiser relembrar pode ver/ouvir clicando AQUI

Enfim, eu posso não ter tido a infância típica dos outros, mas tive a minha infância típica, que certamente também tem muito em comum com a de tanta gente que é sempre diferente e que se constrói, por isso mesmo , de forma diferente.