Esta postagem é na verdade sobre
a greve dos professores das instituições federais de ensino, mas eu ainda demoro
um pouco para falar diretamente sobre o assunto, portanto, aos interessados no
tema (e sei lá, em saber minha opinião), esperem um pouco. Quem não se
interessar é só parar por aqui ou ler outras postagens do blog.
Era uma vez um menino que aos
três anos resolveu que queria ir para a escola e já no primeiro ano fez, o que
chamavam naquela época de Jardim I e Jardim II no mesmo ano, dado o bom
aproveitamento dele. Isso também ajudou seus pais, que receberam uma bolsa do
governo nos anos seguintes para que ele pudesse continuar naquela escola, a
Escolinha da Mônica, uma escolinha de bairro, mas uma boa escola.
Ele seguiu com a bolsa até
encerrar o primário na quarta série (hoje 5º ano do ensino fundamental) e ao
mudar de colégios para fazer o ginásio (hoje do 6º ao 9º ano do ensino
fundamental) ele conseguiu "levar" essa bolsa, o que permitiu que
seus pais pudessem manter os outros dois filhos nas mesmas escolas.
Quando estava prestes a ir para o
segundo grau (hoje, ensino médio), os pais haviam melhorado um pouco a condição
financeira e ele já sonhava em ir para um colégio desses famosos (e caros)
porque só assim teria condições de passar no vestibular, rezava a lenda. Mas aí
o destino apronta das suas e seu pai perde num incêndio o local onde
comercializava suas coisas. Entra o menino, agora um adolescente tímido, na
seleção por meio de histórico escolar em uma escola pública das mais
concorridas. Consegue, mas vai ao primeiro dia de aula assustado, com medo das
histórias que ouvira sobre a qualidade dessas escolas. Lá encontra um grupo de
professores prestes a se aposentar, que haviam sido oriundos de uma época em
que as escolas públicas eram referência e ser professor delas era atraente de
várias formas, tanto financeira como socialmente prestigiada. Naqueles dias
porém, o salário já estava em muito defasado, a biblioteca da escola parecia um
museu, e sua primeira sala de aula tinha uma assustadora armação de madeira que
sustentava o teto para que este não caísse sobre a cabeça dos alunos. Greves
eram uma constante, na busca dos professores por melhores condições salariais e
de infraestrutura para os alunos, mas surtiam pouco efeito. Contudo, aquela
leva de bons professores antigos acalentava ainda esperanças de ao final da
carreira fazerem alguma diferença nas vidas daqueles alunos desmotivados por
uma péssima estrutura física, e pelas fragilidades de novos professores que
foram selecionados "por baixo" porque os melhores professores
preferiam ir para outras oportunidades de trabalho onde ganhariam mais, já que
negociar com o "patrão" governo era infrutífero.
Esse adolescente que acabara de
completar 16 anos terminou o segundo grau nessa escola e foi um dos dois únicos
alunos de sua turma que passou no vestibular para uma universidade pública e
federal naquele ano, mesmo ocupando a posição de número 187 em 200 vagas
disponíveis (Administração era um dos cursos como maior número de vagas). O
menino sabia que a sofrível aprovação teve muito de seu mérito, mas ao encarar
as provas do vestibular, viu também que devia muito aos professores que teve, às
oportunidades que conseguiu, e a grande maioria delas surgiu de políticas públicas,
ainda que paliativas e deficientes.
Ele jovem, começa a sua graduação
e encontra professores naquela época já desmotivados, sem interesse, lutando
novamente por melhores salários e recebendo insistentes "nãos" do "patrão"
Governo Federal. Muitos dos bons professores foram embora atrás de locais onde
pagassem mais, mas felizmente encontrou ainda ali, um bom número dos que tinham
prazer no que faziam, que lhe deram verdadeiras lições profissionais e de vida,
que se tornaram seus mentores, apesar das dificuldades que enfrentavam para dar
seu melhor. Mesmo não conseguindo negociar com o governo, mesmo recebendo
"nãos", mesmo tendo oportunidades de buscar fora melhores
oportunidades, resolveram ficar e fazer a diferença. Lá ele terminou a
graduação, fez seu mestrado e agora faz seu doutorado.
Muitos desses excelentes
professores se aposentaram, alguns bons professores entraram, mas a defasagem
salarial certamente afastou muitos novos excelentes professores que foram
seduzidos por maiores vantagens salariais. Ele próprio trabalhou na iniciativa
privada ganhando mais do que o dobro do que recebe hoje como professor dessa própria
universidade federal, e saiu não em busca de estabilidade no emprego, mas sim
de autonomia para poder trabalhar, de oportunidade para ajudar os alunos a
crescerem, enfim, em busca de um sonho.
Nos três anos que lá está, num campus avançado no agreste pernambucano
dessa mesma universidade que estudou, viu coisas maravilhosas, como ter alunos
de 14 cidades diferentes da região em uma mesma turma e jovens que sem essa
política pública de interiorização nunca teriam a oportunidade de serem os
primeiros universitários de suas famílias. Ele próprio foi o primeiro
universitário da família, tanto pelo lado paterno quanto pelo lado materno.
Ele passou por uma seleção
difícil, sendo o primeiro lugar dentre 32 inscritos, mas é bom que se diga que
a vaga para professor assistente (que pede apenas mestrado) só surgiu porque
ninguém com doutorado se interessou em ir para um campus no interior que não tinha nenhuma vantagem financeira extra
e que ainda funcionava precariamente num polo de confecções sem uma estrutura
adequada à função que deveria se prestar.
Pouca coisa mudou nesses três
anos e é justo esse o problema, ele não sabe ainda o que é um aumento de
salário, embora tudo a sua volta tenha aumentado de preços. Ao abastecer o
carro ele pagava em torno de R$1,50 por litro de combustível naquela época do concurso,
hoje para R$2,76. Ele faz parte de uma comissão de concursos que analisa a
documentação dos candidatos e uma vaga para professor na área de sistemas de
informação não teve nenhum doutor apto inscrito para esse campus no interior. E quem entrar agora terá um teto para se aposentar,
bem abaixo (muito abaixo) do salário final que receberá.
Ele quer continuar nessa
instituição, quer mesmo, ele quer fazer a diferença, ele quer ser como seus
excelentes professores, mas teme muito que o nível das seleções continuem a
cair, que a carreira fique cada vez mais desprestigiada, que cada vez menos
pessoas sonhem em ser professor, apenas porque o governo não está se importando
e eles então devam ir atrás de novos "patrões" na iniciativa privada.
Ele ainda pôde contar com os arremedos de políticas públicas, mas e os alunos
dos próximos anos?
Ele queria muito estar errado,
mas a cada dia que passa percebe que seus prognósticos são verdadeiros e sua
conta bancária e os postos de gasolina insistem em lembrá-lo disso. Assim, como
ele não quer simplesmente pegar suas coisas e ir embora negociar com
"patrões mais simpáticos à sua situação financeira" e porque prefere
ainda acalentar seu sonho e oferecer aos
alunos um pouco das oportunidades que teve na vida, ele tem que
apoiar a greve, ainda que, infelizmente, traga problemas para os alunos, mas
certamente os problemas deles e dos futuros alunos serão bem maiores no futuro.
Ah, desnecessário dizer que o
menino da história sou eu mesmo não é? O próprio título da postagem já acabava
com o pseudo suspense: "Minha Vida, Minha Greve".