segunda-feira, 21 de março de 2016

FLAUTISTA Vs SEREIA: A ORIGEM DO (DES)ENCANTAMENTO



Até nos contos a música está associada a encantamento. O flautista de Hamelin e o canto da sereia são uma prova disso. Nos últimos tempos, a indústria do entretenimento tem percebido o poder de juntar em um mesma história, personagens de diversas narrativas. A mais esperada por esses dias é o lançamento do filme "Batman Vs Superman: a origem da justiça". Isso me fez pensar como poderia ser um conto onde o flautista e a sereia divergissem entre si quanto ao que fazer com as crianças de Hamelin. Importante lembrar que nas narrativas originais o flautista, a princípio visto como um mercenário, acaba por libertar as crianças de uma sociedade corrupta. Já a sereia, apesar de seu encantamento, levava os aventureiros do mar para o fundo das águas onde padeciam. Eis o resultado desse meu pensamento:


Flautista Vs Sereia: a origem do (des)encantamento


Era uma vez, um pequeno grande vilarejo. Apesar de não serem muitos os que ali moravam, o mundo todo estava ali contido. Na verdade, cada habitante de Hamelin, era um universo em particular.


Parte da cidade vivia nas sombras e nem tomava conhecimento da existência de sua outra metade. Outra parcela da sociedade hameliniana habitava lugares que de tão iluminados não permitiam perceber a escuridão onde sua outra metade vivia.


Certo dia, algumas crianças da luz, descobriram, enquanto brincavam de pipa, bola e pião, um grande relógio antigo, parado, maior do que eles, que era na verdade uma passagem para um túnel que levava ao mundo da escuridão.


Ao abrirem a passagem, levaram luz para dentro do túnel e permitiram que habitantes das sombras conhecessem a luz e que os filhos da luz descobrissem as trevas da escuridão. O resultado dessa descoberta modificou completamente o modo de vida de ambos os povos. Eles acabaram por se perceber como criaturas de luz e de sombras.


Uma outra consequência do túnel aberto pela curiosidade infantil, foi a de que a luz assustou os ratos que viviam escondidos na escuridão, ratos com os quais os moradores desse lado sombrio haviam aprendido a conviver, até porque a falta de luz não os permitia enxergar a aparência  asquerosa dos animais. O resultado foi uma invasão de ratos por toda a cidade.


Apavorados, uns pela descoberta da existência e outros pela descoberta da aparência dos ratos, os membros da cidade, se reuniram em conselho. Alguém sugeriu que procurassem ajuda profissional, alguém que com sua arte pudesse varrer de suas vidas os ratos que tanto incomodavam. 


A indicação não podia ser mais clara: eles precisavam de um mago, um mago artista, um flautista conhecido, enfim, sugeriu um dos presentes. Seu tratamento para os nossos ratos seria a música, defendeu aquele que conhecia os benefícios daquela terapia pela arte. Alguns estranharam mas acabaram convencidos pelos entusiastas da ideia. A única coisa que pareceu desagradar a maioria foi o fato do flautista cobrar por sua arte. Acharam absurdo terem que pagar pelo tratamento-arte. Mas a emergência da situação não permitia mais delongas.


E assim o flautista conhecido iniciou seu trabalho de, com a música de sua flauta, dar sumiço a cada um dos ratos da cidade. Chegou então o momento do pagamento. A cidade em conselho decidiu que as 30 moedas de prata prometidas ao flautista eram muito. Ele apenas havia usado sua flauta, sua arte, para de forma simples e sem muito trabalho ganhar tanto. Deram-lhe três moedas de prata e até escarneceram dele, mandando que ele procurasse algo mais sério para fazer na vida.


Ao ouvir isso, com ódio da cidade, porém com pena das crianças que um dia se tornariam tão corruptas quanto os adultos, decidiu usar sua arte para salvar aquelas crianças da crueldade daquele mundo que habitavam. Aos poucos as crianças foram se rebelando, tendo vontade própria, perguntando, questionando, brincando e sorrindo como nunca antes. A cada dia que passava se tornavam seres mais completos, conscientes de seus aspectos luminosos e sombrios, o que lhes dava a oportunidade até, de viver sua completude. Estavam em perfeita comunhão com Deus e  com o universo.


Só que essas crianças começaram a crescer e suas perguntas e coragem passaram a incomodar cada vez mais os membros da cidade. Se antes a infestação havia sido de ratos da escuridão, agora a claridade do pensamento dessas novas crianças se tornava uma ameaça ainda maior. As crianças não aceitavam qualquer desculpa, não se deixavam iludir por falsas promessas e sempre, sempre, buscavam novas maneiras de fazer mais, melhor e mais belo.


Reuniram-se pois, novamente em conselho, e acataram que seria necessário adotar medidas mais drásticas quanto àquelas crianças que chamavam de indolentes. Sugeriram que elas precisariam ser medicadas urgentemente para se comportarem de maneira adequada e sensata. Alguém indicou uma sereia que havia feito grandes avanços em suas pesquisas sobre o comportamento humano, mesmo ela não sendo completamente humana. A sereia que gostava de ser tratada como "doutora", conseguiu encapsular a felicidade presente em sua voz  e em seu canto. Em forma de pequenos comprimidos, administrados regularmente, o revolucionário medicamento garantiria a paz e a tranquilidade do sono de todos os habitantes da cidade, especialmente das crianças que, diziam, pensavam demais.


O custo seria muito alto, mas alguém no conselho advogou que a ciência é cara, mas que é a maneira mais eficiente de resolver o problema. Um outro conselheiro chegou a afirmar que o problema todo começou porque eles investiram em soluções baratas como a do artista ingrato que apenas tocava flauta e que nunca havia sido uma pessoa estudada. Diante dessa argumentação, os conselheiros constataram que a única saída seria contratar a Dra. Sereia, custasse o que custasse.


As crianças passaram a receber doses cada vez maiores das "pílulas de felicidade", e aos poucos, todas passaram a se comportar de maneira semelhante e, sobretudo, sem aquela rebeldia e energia típicas que tanto incomodavam os adultos. E a cidade parecia feliz. Tudo que não era adequado era colocado na parte escura da cidade onde ninguém perceberia nada. Assim, cada cidadão ficava à vontad para publicar toda a sua suposta "luminosidade" nas rodas sociais que participavam. De tão luminosos passaram a enxergar menos, pois eram ofuscados uns pelos outros. Mas se percebiam felizes e faziam filas todos os meses à porta da sereia para ouvir seu canto e tomar mais de suas pílulas, embora enxergassem cada vez menos, se movimentassem cada vez menos, rissem cada vez menos, fossem cada vez menos humanos.


Só que no fundo da alma de cada uma daquelas crianças-luz, um som de flauta, a medida que iam perdendo a visão, parecia se tornar mais forte. Só que agora essa música não vinha mais de fora, mas de dentro da alma de cada uma delas. A pílula da sereia só funcionava para aquilo que vinha de fora. E a cidade começou a sorrir de novo...