quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

CONTO DE FADAS PRA QUEM ACHA QUE SABE TUDO SOBRE RELACIONAMENTOS

A impressão que tive foi a de que eles haviam saído de algum livro de conto de fadas, logo depois do ponto final posto diante das palavras: "... e foram felizes para sempre". Ela usava uma espécie de saia armada que em composição com a blusa e com a pouca iluminação davam a ela a impressão de estar usando um vestido de verão desses típicos de princesas de contos de fada em época de...  verão. Ele usava roupas mais comuns (do que ela), mas ainda assim incomuns para os "nossos dias",  especialmente em se tratando do calçadão de uma cidade litorânea  como Olinda. Calça brim e camisa "engraçada" (me falta mais conhecimento de moda para descrever os detalhes). Definitivamente não eram príncipes de algum reino suntuoso, muito pelo contrário. Mas eram príncipes felizes e empreendedores.

Pois é, nesses tempos de grave crise financeira, não só o mundo real parece ter sido abalado. Digo isso porque meus "personagens" estavam vendendo trufas para complementar a renda. Faziam isso de mãos dadas e com os mais largos sorrisos, daqueles que intimidam qualquer um a dizer não. Foi assim que me vi estendendo uma nota de dois reais para comprar a trufa encantada do casal de príncipes empreendedores. A cena foi tão surreal que só me lembrei do trecho do livro d'O Pequeno Príncipe onde o aviador diz algo como: "quando o mistério é muito impressionante, a gente não ousa desobedecer". No meu caso eu não ousei fazer perguntas.
 

Mas em se tratando de calçadão de praia movimentada em início de noite de céu claro, com dezenas de pessoas caminhando, correndo, passeando com crianças e/ou cachorros, namorando, meditando ou, como eu, simplesmente observando o cotidiano (após alguns quilômetros de corrida), meus "amigos" príncipes não passariam incólumes ao comentários  e às "benditas" perguntas do tipo que já trazem no kit a resposta desejada pelo perguntador.

Assim, sentada há pouco mais de dois metros de mim,  vi uma senhora com ar curioso, acompanhada de uma jovem, provavelmente sua filha, que após também não conseguir negar a compra da trufa encantada, comenta com ela em voz alta: "olha só filha, como são felizes!!! Bem que você e seu namorado podiam ser assim né?!" A senhora, ao que parece, sem perceber o enrubescimento do rosto da menina envergonhada por estar sendo exposta publicamente, se volta para o casal de príncipes e pergunta: "como vocês fazem para ser tão felizes? Queria muito que ela aprendesse com o testemunho de vocês!"

Confesso que senti uma empatia imediata com a pobre filha da senhora, haja vista minha grande experiência de pessoa, cuja vida parece ser objeto de análise de pessoas de vida entediante. Contudo, meu princípio de tentar ao máximo não me meter na vida alheia, me fez calar ante ao constrangimento sofrido pela jovem. Mas a minha vontade era de dizer umas poucas e boas àquela senhora, que podia até ser mãe da menina, mas que ainda assim não tinha o direito de expor sua intimidade a estranhos, sejam de conto de fadas ou dos fados do dia-a-dia.

Mas foi aí, nessa hora de silêncio constrangedor entre os personagens envolvidos, que a magia aconteceu. Sabe quando alguém por iluminação diz tudo o que você sempre teve vontade de dizer e nunca teve coragem de falar? Povo de conto de fadas é mesmo mágico. A princesa, sem perder um único centímetro de seu sorriso começou a dizer com aquela voz suave e doce, também típicas das princesas encantadas:

"Minha bondosa [bondosa? sei!] senhora, não diga isso. Não somos exemplo e muito menos podemos dar testemunhos a quem quer que seja quando o assunto é amor. Apenas somos! Não sabemos se nosso amor durará eternamente, mas está sendo eterno enquanto está durando. Temos a certeza que mesmo que o amor um dia acabe, ainda seremos felizes. Sabe por quê? Porque eu já era feliz antes de encontrá-lo e ele já era feliz antes de me encontrar. Agora estamos felizes juntos, embora saibamos que seríamos felizes separados também. Mas até nisso não somos um exemplo. Nós somos assim. A senhora é certamente diferente. Essa jovem linda também é diferente de nós e da senhora. E esse rapaz aqui ao lado [ela percebeu que eu ouvia a conversa] é uma outra pessoa completamente diferente da gente. E a graça na vida, é que a todos nós é dado o dom de ser feliz, do jeito que nós somos. "Felicidade é só questão de ser" [conheço essa música!]. Não precisamos copiar ninguém, somos originais, indivíduos únicos. O mal do mundo é querer nos colocar em caixinhas, nos rotular, pegar uma característica nossa e assim nos enquadrar em uma denominação, como se pequenos detalhes determinassem quem somos. Tais detalhes podem ser até importantes. Mas podem não significar nada. Podem deixar de significar uma coisa e passar a significar outra coisa. O mundo está em constante mudança, e por mais que tentemos reduzir pessoas a estereótipos, na verdade cada um é um ser de uma única espécie, a sua própria espécie."

Minha vontade era a de aplaudir a princesa, mas o príncipe também tinha sua fala...

"Vocês pensam que somos um casal de príncipes que saiu de um conto de fadas logo depois do ponto final que sucede o fatídico '...e foram felizes para sempre"? [:O ele lê pensamentos?]. Sim, nós somos! Mas vimos que o rótulo 'felizes para sempre' é muito chato e resolvemos fugir do palácio, da corte, do luxo e da ostentação. Queríamos ver o mundo e como dizem que foi a partir de Olinda que Deus criou o mundo , fizemos aqui nossa primeira parada. Como nossa moeda não vale nada aqui no mundo real, estamos vendendo essas trufas encantadas. Elas tem poderes mágicos. Elas nos fazem perceber a incoerência de nossas tentativas de reduzir os outros a dois grupos: um que pensa como nós e outro que pensa contra nós, sempre dicotômicos num "a favor" ou "contra", num "bombordo" ou "boreste", numa "maioridade" ou "menor-idade", numa "orientação" ou "desorientação", num "credo" ou "ceticismo". E sabe por que essas trufas tem esse poder? Porque na hora que a gente experimenta a trufa, a única coisa que existe somos nós, o hoje, o agora, o sabor, o saber... o saber ser sabor, agora, no nosso hoje."

E dizendo isso, ante aos rostos atônitos meu, da senhora e da jovem (agora menos vermelha), foram embora, de mãos dadas, oferecer suas trufas a um casal de namorados que estava num canto mais afastado. Quanto a mim, desembrulhei a trufa, a coloquei na boca, fechei os olhos e, naquele momento fui feliz.

2 comentários:

  1. Que crônica(permita-me chamar de crônica) deliciosa( sem analogia com as trufas). A desmistificação dos contos de fadas da Disney é tão legal( Os verdadeiros contos de fadas são os dos irmãos Grim). Esse conceito de encontrar a felicidade em outra pessoa é tão desesperançoso.

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  2. Sempre um poeta, um escritor, um artista...

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