segunda-feira, 27 de junho de 2011

Insônia, Piada, Mitologia e Cinema


Ultimamente até piadas me fazem refletir, algumas até mais do que muitos dos textos acadêmicos lidos. No post anterior já havia iniciado com a piada do eletricista, agora não consegui dormi e acabei me levantando pensando em outra piada, e até como forma de ver se, colocando essas palavras para fora, eu consiga voltar pra cama, aqui estou escrevendo.

A anedota de minha insônia de hoje conta que numa grande enchente, dessas que estão virando rotina, um pastor evangélico de muita fé, precisou subir até o telhado para fugir das águas. Passou então um morador com uma canoa oferecendo carona e ele disse que não precisava porque Deus iria salvá-lo. Depois a defesa civil veio com uma lancha e tentou resgatá-lo, mas ele disse que não precisava porque sabia que Deus viria salvá-lo. Por fim, quando as águas já se precipitavam por sobre o telhado, um helicóptero das forças armadas que ajudava no resgate jogou uma escada dessas de corda para que ele subisse e ele insistiu em não ir, gritando para que ouvissem apesar do barulho das hélices, que Deus viria salvá-lo. Por fim, o pastor morreu afogado. Chegando ao céu, ele resolveu tirar satisfações pessoalmente com Deus. Pediu uma audiência e ao ser atendido foi logo acusando o Todo Poderoso de ter sido negligente, de não ter cumprido a promessa de salvá-lo uma vez que ele tivesse assumido sua fé e outras coisas mais. Deus escutou tudo e ao final disse calmamente: “meu filho, eu mandei até helicóptero para lhe salvar...”

Fiquei pensando nas tantas oportunidades que a vida nos oferece e nós acabamos deixando passar. Diz a mitologia que a Oportunidade era um ser selvagem que vivia correndo em alta velocidade pelos bosques e florestas. Rezava ainda o mito que, quem conseguisse agarrar uma Oportunidade teria sorte para toda a vida. O problema era que, além de passar sempre correndo, ela, a Oportunidade, tinha o corpo escorregadio, sendo possível agarrá-la apenas pelos cabelos. O detalhe era que a Oportunidade só tinha cabelos na parte posterior da cabeça. Assim, a única forma de conseguir agarrar a dita cuja era prever sua chegada e no momento exato virar-se de frente para a criatura e agarrar-lhe, com unhas e dentes (dizem que é daí que deriva a expressão popular que alude a esse fato), os seus cabelos. Só assim ela poderia ser capturada.

Fiquei triste com a situação do pastor da piada. Tanto tempo de preparação não lhe foi útil para agarrar as inúmeras oportunidades que lhe foram oferecidas, tanto que acabou pagando com a própria vida por sua incapacidade de entender os fatos e de reagir diante dessas informações.

Lembrei-me ainda do filme “Proposta Indecente”, onde um homem muito rico oferece um milhão de dólares a um casal para passar uma noite com a mulher. Quando o enredo consegue nos deixar bem à vontade no papel de juízes das ações do milionário, levando-nos a considerá-lo um canalha, ele conta uma história de sua adolescência, ainda pobre, quando voltava para casa de metrô. Nessa viagem, diz ele, havia uma linda garota sentada um pouco a sua frente. Toda vez que ele a olhava ela desviava seu olhar. O mesmo fazia ele ao ser encarado por ela. Numa das estações ela desceu. Olhando pela janela, nas palavras dele, ela lhe deu o mais lindo sorriso que jamais vira e desde então nunca mais esquecera. Ele tentou ainda descer do trem, mas as portas se fecharam e ele foi levado a outra estação. Chegando lá pegou um trem de volta, desceu na estação anterior, a procurou por todos os lados, pelas redondezas, voltou dia após dia até a estação, no mesmo horário e em outros horários, mas nunca mais a encontrou. Segundo ele, havia perdido a oportunidade de sua vida e por isso resolvera que acontecesse o que acontecesse não deixaria isso tornar a se repetir, por isso foi capaz de oferecer tanto dinheiro por ela. Mais tarde, no filme, ele a deixa ir porque, a despeito de todos os seus esforços ele sabe que ela nunca olhará para ele como olhava para o marido. Ao menos ele tentara. Mas essa coisa de olhar é sempre muito forte mesmo...

Não estou querendo fazer apologia à ética instrumentalista onde os fins são justificados pelos meios. Apenas me vieram essas imagens à cabeça e precisava colocá-las para fora para tentar dormir. Sei que o pastor e o milionário são diferentes, mas agiram de forma semelhante a muitos de nós que ficamos presos ao comodismo das convenções que nos são impostas. Impossível não se identificar com eles. Impossível não se perceber tão incapaz nessas horas em que perdemos oportunidades por motivos diversos, alguns até razoavelmente justificados por essas convenções, mas que ainda assim são e serão sempre oportunidades perdidas. E depois ainda reclamamos de não termos sorte na vida...

domingo, 26 de junho de 2011

Fiat Lux


Lembrei-me de uma piada. Um pedreiro, um carpinteiro e um eletricista discutiam sobre qual deles exercia a profissão mais antiga do mundo. O pedreiro disse que foram seus antepassados que construíram a muralha da China. Ao que o carpinteiro devolveu dizendo que a Arca de Noé era a prova de que a carpintaria era mais antiga. O eletricista calmamente pergunta: “e quando Deus criou o mundo e disse ‘faça-se a luz’ quem vocês acham que puxou a fiação?” 

Bem, excluindo-se a ação do suposto antepassado eletricista de nosso amigo da piada, na primeira das duas narrativas da criação do mundo que encontramos no Gênesis... 

Um parênteses... talvez você esteja se perguntando: “duas narrativas?” Pois é, isso mesmo! Basta ler os dois primeiros capítulos do Gênesis para descobrir que trazem, cada um, uma história diferente para a criação do mundo. Interessante não? Contradição? Não se lermos o Gênesis como um livro de poesias e não como um tratado científico. Eu, particularmente, acredito que seja muito significativo que a primeira coisa que se encontre num livro sagrado, no caso a Bíblia (para os cristãos) e o Torá (para os judeus), seja uma grande e bela poesia em que o homem contempla o universo como criatura divina.

Parênteses fechados, quando Deus criou o mundo, lá na primeira das narrativas poéticas para  a criação, só havia trevas. E Deus disse: “Fiat lux!” Não é propaganda de caixa de fósforos , muito menos de fábricas de carros e/ou sabonetes, é que Fiat lux  significa “faça-se a luz!” Interessante que anos mais tarde cientistas começaram a professar que o universo foi criado com uma explosão de... de... luz. Coincidência? Bem, a fé de cada um decide. O que me chama atenção mesmo é que, tanto por relatos poético-teológicos quanto físico-científicos, o início de tudo foi repleto de luz. Pra ser mais exato, o início da vida foi marcado pela luz. Antes havia o caos, a escuridão, as trevas, o nada, o vazio. A luz é o sinal de vida nova.

Lembro agora dos tempos de criança, quando as faltas de energia eram mais constantes, e de como eu adorava quando isso ocorria, pela expectativa do que aconteceria no momento em que a luz se faria novamente. Explico! A falta de luz deixava todo o bairro no escuro, em profundo silêncio, todos à espera que a companhia elétrica resolvesse o problema. Lembro que meu pai sempre ia para o quintal olhar a extensão da falta de energia. Quando ele não conseguia enxergar nenhum ponto de luz dizia: “foi geral!” Isso era sempre visto como algo bom, pois significava que tomariam providências mais rápidas. Não posso dizer que havia precisão científica nas conclusões do senso comum de meu pai, mas nas minhas lembranças quanto maior a queda de energia, realmente mais rápido ela voltava. E quando a luz retornava, podia-se ouvir o rumor de alegria dado pelo bairro em uníssono. Sem ensaios, a luz anunciava a alegria... Alguém que estivesse com os olhos fechados saberia que a luz retornara usando apenas a audição. Tenho a impressão que quando Deus fez a luz, o céu estava escuro, os anjos tristes e calados, e quando a explosão de luz aconteceu, uma outra explosão, esta de alegria, ecoou pelo universo com o alegre rumor uníssono desses anjos. Tudo ainda estava por fazer, por construir, por edificar, por criar, nada estava realmente pronto, mas havia luz. A bagunça e o caos, agora iluminados, tinham a chance de se transformar em algo melhor, em algo vivo, em algo que realmente valha a pena viver. A incompletude sempre estaria lá, mas também lá estaria a luz infinita que permite que o infinito iluminado seja sempre mais.

Muito tempo depois, um certo Jesus de Nazaré, nos disse que deveríamos ser criaturas como a luz, que deveríamos ser luz do mundo. Jesus era poeta, ele nos chamava à responsabilidade que todos temos em iluminar os caminhos da criação e das criaturas. Nossos gestos, nossas ações, nossas palavras, têm poder divino e criador, afinal de contas, Deus nos fez à sua imagem e semelhança e como semelhantes herdamos esse poder de criar vida nova. É certo que nem todos querem ser mesmo iluminados. Alguns fazem questão até de apagar o facho de luz que mostra o caos, o vazio e a bagunça de suas vidas. Nessas horas, o problema não é da pessoa-luz. Não podemos colocar as responsabilidades do bagunçar de nossas vidas na luz que mostra esse caos, seria loucura demais, paranóia até. Ao contrário, deveríamos aproveitar que a luz foi feita e tentarmos organizar o que pudermos antes que a luz passe. Nunca sabemos por quanto tempo teremos a luz em nossas vidas, por isso mesmo, temos que torná-la eterna em nosso ser. Precisamos aprender, nesses momentos de iluminação, a criar a nossa própria fonte geradora de energia, não apenas para nós, mas para nos permitir ser, também nós, pessoas-luz na vida de pessoas-trevas. Estaremos assim fazendo a nossa parte em iluminar. Restar-nos-á apenas, esperar que essa nossa chama contagie o outro para que assim possamos iluminar não apenas nosso bairro, mas todo o mundo.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Pamonhas


Semanas antes do São João é sempre a mesma coisa. Minha mãe ouve recomendações sobre pessoas que vendem pamonhas e que, “dizem”, são boas. Eu contrario qualquer princípio do Direito de inocentes até que se prove o contrário, até porque isso é culinária e não uma sessão de um fórum qualquer da vida e no meu julgamento qualquer pamonha que não seja a da minha mãe é culpada, digo, fraquinha, até que se prove o contrário. Mas quem sabe esse ano...

Compram-se amostras. Experimento de uma, experimento da outra, nada que realmente empolgue. As “provas” desse ano até que não foram tão ruins, dava pra comer uma. Duas já seria um exagero e muito boa vontade, coisa que não tenho quando o assunto é pamonha. Mas não tem jeito, ainda não foi dessa vez.

Minha mãe diz: “eu faço as pamonhas, mas alguém tem que ralar o milho”. Em “alguém” leia-se eu. Isso porque há anos minha mãe descobriu um talento inesperado em seu filho primogênito, o de ralar milhos sem ralar os dedos. Alguns dirão que ralar milho é coisa do passado, que existem os liquidificadores e os processadores, mas esqueçam, está aí o segredo da pamonha de minha mãe, ou pelo menos um deles. Não há processador e principalmente liquidificador que consigam o mesmo rendimento e o mesmo sabor para estas iguarias juninas. Os outros segredos, diz ela, é não ter medo de colocar açúcar (odeio pamonhas que ficam com gosto de sal) e esperar o tempo suficiente para o cozimento (uma hora após a fervura, no mínimo). 

Mas eu tenho certeza que há outro segredo e esse é bem difícil de copiar. O amor dela que vai junto com a pamonha, a forma como ela consegue envolver a família em todo o processo (eu sou o ralador). Ontem não foi diferente, foram quase três horas ralando uma “mão” de milho, com um olho no ralo e outro na TV vendo a brilhante conquista do Santos na Libertadores. Meu pai resolveu ajudar e tornou tudo mais engraçado com ele e minha mãe fazendo de conta que discutiam, minha mãe reclamando dele e ele fazendo de suas graças, parando mais que tudo para ver o jogo. Coisas de meu pai.
 
Eu tenho a clara impressão de que se um dia encontrarmos uma pamonha tão boa, ainda encontraremos algum defeito, nem que seja mínimo, para termos a desculpa para nos juntar de novo nesse processo artesanal, familiar, que deixa a pamonha com um gosto especial, gosto de família, gosto de vida em comunidade, gosto de alegria, gosto de amor. Como diz uma propaganda de cartão crédito, “tem coisas que o dinheiro não compra”.

Um bom São João a todos!

terça-feira, 21 de junho de 2011

A Que Ponto Cheguei!


No filme “A Origem” o enredo gira em torno da afirmação de que na origem (daí, creio eu o título em português) de grandes mudanças estão ideias simples que são inseridas (no original americano o filme se chama The Insertion) em nossas mentes. A simplicidade dessas ideias faz com que as mesmas passem despercebidas por nossos “filtros” mentais. Elas então se instalam e começam a provocar alterações que só serão percebidas mais tarde, por vezes tarde demais.

Ontem me dei conta que isso em algum ponto aconteceu comigo. Difícil saber quando e qual ideia foi inserida. Certo apenas que isso me transformou numa pessoa bem diferente daquela que fui um dia e que teimava em negar até para mim mesmo que me tornei.

Eu sabia que havia sido citado numa crônica, só não sabia que lá estavam meus pensamentos, minhas palavras, meus atos e, sobretudo, minhas omissões. Ela, a escritora, não me colocava como tema principal de seu texto, mas o mentor a que ela se referia de forma coadjuvante em seus escritos era eu. Recebi o texto por e-mail e li ainda pelo celular. Ela ao meu lado acompanhava a reação, mais ou menos como deve fazer alguém que joga uma bomba e fica de espreita esperando para ver o estrago feito. Para ser ainda mais cruel ela dizia ao final: “com relação ao meu mentor: ainda tenho fé nele!” E a bomba detonou ante às últimas palavras do texto, palavras minhas, citadas entre aspas conforme o figurino, mas que não eram uma homenagem, até porque ela dizia que não queria ser as palavras que eu dissera: “somos a reprodução sistemática do modelo que deu certo”.

Eu, que cresci sob uma formação religiosa católica progressista, baseada na Teologia da Libertação, que sempre fui questionador, que enfrentava os outros para mostrar meus pontos de vista, que deixei conservadores a ver navios provando por A + B que estavam errados porque disseram ser impossíveis coisas que eu consegui mostrar possíveis, que sempre tive o discurso, especialmente em sala de aula, de que nunca devemos nos acomodar, de que precisamos lutar por nossos sonhos custem o que custar, lá estava eu, evocando com minha fala um compromisso com a reprodução de um sistema, de um modelo, que eu mesmo não concordo ser correto, mas que é, certamente, mais cômodo.

Lembro agora de outro filme, “Duas Vidas”, com o Bruce Willis, no qual o personagem principal tem um encontro consigo mesmo quando tinha seis anos e onde em uma das cenas o personagem criança diz ter vergonha do que ele se tornou quando crescido, apesar deste ser profissionalmente bem sucedido, pois ele havia se distanciado e muito do que outrora planejara enquanto criança. Guardadas as devidas proporções me vejo nela, na escritora da crônica, anos atrás.

Mas se posso usar algo em minha defesa, é que, embora um mentor, como ela me chama, tenha inúmeras funções, uma delas é a função de proteção. Só que eu estou estreando nessa coisa de ser mentor. Quando ela me chamou assim pela primeira vez eu pensei que era brincadeira. Talvez essa minha imaturidade nesse novo papel me tenha feito exagerar na função protetora, esquecendo das demais funções de exposição/visibilidade, patrocínio, amizade, modelo, coaching, desafio nas tarefas, aceitação/confirmação e aconselhamento. Não adianta apenas defender dissertação sobre o assunto é preciso saber praticar o próprio discurso.

Ainda não estou plenamente convencido que ela está correta em agir de forma tão impulsiva, mas não posso deixar de admirar a coragem dela, coragem por mim perdida a partir da inserção de alguma ideia simples que me passou despercebida. Coragem que ela julga não estar perdida, por isso diz ter fé em mim. Queira Deus que ela esteja certa quanto a mim! E queira Deus mais ainda que ela esteja certa quanto a ela mesma, seus próprios pensamentos, suas próprias palavras, seus próprios atos e suas não submissões.

domingo, 19 de junho de 2011

"Meia-noite em Paris"

Certamente o cinema é daquelas coisas com as quais dificilmente escapamos de nos identificar em algum momento de nossas vidas, seja pela ilusão que insinua real, seja pela realidade que se apresenta ilusória. Creio que em algum momento diante da tela branca e do contexto escuro em torno dela, cada um de nós, ao menos uma vez já se surpreendeu vendo uma projeção de si mesmo, sem saber ao certo se continuava no banco do cinema ou se havia sido transportado para dentro do próprio filme ou até mesmo se o filme passava a ser exibido em si próprio, tela branca de um cinema particular.

Para que isso aconteça não é preciso que haja uma identificação literal, textual, audiovisual, até porque isso só seria possível em um filme autobiográfico que costuma, segundo dizem os retratados nesse gênero, ser muito diferente apesar de inspirarem a tal da vida como ela foi. A identificação a que me refiro é muito mais no nível da significância dada por quem faz o filme e percebida por quem o assiste. Foi nesse sentido que me vi estupefato diante do novo filme do Woody Allen, “Meia-noite em Paris”.

Não darei detalhes do filme. Sabê-los é de certa forma abrir mão dos instantes mágicos que só o cinema e a vida, juntos, podem nos proporcionar. Isso não irá salvar o mundo, provavelmente nem salvará você de você mesmo, mas poderá manter acesa alguma luz que queira se manter assim a despeito de tudo o que acontece de não tão positivo no hoje de cada um. Enfim, recomendo! Eu mesmo preciso assistir novamente. É como caminhar na chuva e no tempo.

sábado, 18 de junho de 2011

Vovó, Deus te faça feliz! * (repost)

 * Crônica passada, publicada em 19 de junho de 2007. Hoje faz 4 anos que minha avó materna se foi. Republicando esse texto quero fazer memória não de sua morte, mas de sua vida.

Ontem foi um dia triste. Até então, eu me orgulhava e me sentia um afortunado por ter os quatro avós. Mas minha avó materna nos deixou nos primeiros raios de sol do dia de ontem. Morreu em casa, cercada pelos filhos (especialmente as filhas), pouco-a-pouco, à moda antiga, sem médicos, enfermeiras, tubos, soros... foi um final digno, para uma vida digna. Morreu como viveu, cercada de muito carinho, dando muito carinho; não à toa, uma pequena multidão acompanhou seu velório que se estendeu durante as horas seguintes e terminou com o sepultamento aos últimos raios de sol deste mesmo dia.

Essa pequena multidão foi formada por filhos, netos, bisnetos, genros, amigos e amigos de todos nós que vieram em solidariedade. Embora tenha sido um momento triste, foi bom ver como ela era querida por tanta gente, ver como ela em sua vida, soube acolher com muita alegria cada um que chegava, cada um que por lá passava. Ela fez valer à pena a vida que viveu.

Contudo, eu e minha mania de imaginar outros cenários, já havia me feito esta pergunta antes e me perguntei ainda mais no dia de ontem: e se ela tivesse feito outras escolhas? Explico melhor...

Minha avó seguiu à risca o “script” das mulheres de seu tempo, nascidas no interior, casou-se cedo, teve seus filhos, cuidou da casa, respeitou o marido nos 59 anos e meio de casamento... talvez por ter seguido esse roteiro não tenha aprendido a ler, para não ir contra a mãe dela não aprendeu a tocar um instrumento que era seu desejo de infância. Também nunca fez viagens longas e acabou dia após dia se acostumando com a vida que tinha, aceitando mansamente o destino que lhe cabia.

Uma parte de mim até diz que saber aceitar as conseqüências das escolhas (ainda que forçadas por padrões sociais) seja uma dádiva, porém outra parte insiste em trazer à tona o “e se...?”.

Lembro de algumas cenas que me marcaram: ela parando tudo para me ouvir ler; ela deixando seus afazeres para ver meu irmão tocar um violão; ela atenta quando contávamos as histórias dos locais que visitamos. Uma das últimas, que contei foi de uma trilha que fiz em Serra Negra. Ela parecia viajar junto com a gente nos nossos relatos.

Sei bem que quem estiver lendo essa crônica pode até já ter chegado à conclusão de que se ela tivesse feito outras escolhas muito provavelmente eu nem existiria e consequentemente não estaria aqui escrevendo. Penso que isso seja mais do que certo, mesmo porque, desde que eu comecei a escutar as histórias sobre a minha avó, mesmo sabendo que ela sempre dignamente cumpriu seus papéis de esposa e mãe, no fundo talvez ela não tivesse nascido para o casamento e a maternidade. Talvez ela mesma me reprovasse se me visse escrevendo isso, era o paradigma dela, o paradigma que orientou suas escolhas e normalmente não aceitamos que questionem nossos paradigmas.

Ontem ao pensar nisto, senti uma responsabilidade muito grande. Percebi quantos sacrifícios foram necessários para que eu estivesse na frente desse computador, escrevendo esta crônica. Sacrifício dela, mas também de meu avó, de meus pais, de tantas pessoas que passaram pela minha vida. Se existe um lado bom de velórios e enterros, é de que, mais do que pensar em morte, eles nos forçam a pensar na vida, na nossa própria vida, já que ainda, ao menos por enquanto, estamos vivos. Estarei eu sendo digno de receber algo tão precioso como a vida? Será que as decisões que estou tomando hoje afetarão as pessoas que virão depois de mim? Em épocas de aquecimento global, guerras, fome, penso que a morte é a única coisa que ainda evita que caíamos na ilusão de que nossos atos são inconseqüentes.

Mas como sempre acontece quando escrevo, fui falando, falando, falando e nem entrei nas razões do título desta crônica. Penso então que é um bom fechamento proceder com as devidas explicações. No interior, ainda é muito comum pedir “abença!”(corruptela de “me dê a sua bênção!). Todos normalmente respondem “que Deus te abençoe”, mas minha avó era diferente pelo menos nisso, pelo menos nisso ela não seguia os padrões, ela sempre respondia “que Deus te faça feliz!”. Fiquei triste por não ter escutado essa resposta da última vez que lhe pedi “abença!” (ela já não falava mais). Porém sei que ela, agora junto do Pai, está diretamente pedindo a Ele que nos faça hoje e sempre, muito felizes, seja seguindo as normas como ela fez, seja enfrentando os padrões estabelecidos, como talvez um dia ela sonhou em fazer.  Obrigado vovó! Até um dia!