Em tempos de tensão política extrema, catalisada pelo poder de
alcance das redes sociais, é até normal que alguns de nós tenhamos exagerado em
nossos posicionamentos ideológicos. Contudo, ser um pouco mais enérgico, vez ou
outra, é típico do debate político e, desde que restrito a dados momentos,
contextos e ações não violentas, é não só aceitável como libertador, afinal de
contas, ninguém deveria ser obrigado a acatar, calado, opiniões diferentes da
sua.
Mas o que temos visto atualmente sai da curva de normalidade
da tradição do debate político. As discussões se dão a qualquer momento, em
quaisquer contextos e vêm carregadas de sentimentos de ódio, e o que é pior,
projetadas em direção a “amigos”, que passam a ser personificados como
“inimigos”.
Analisando minha timeline
no Facebook e as seções de comentários nas mídias digitais, é notório como o
conteúdo das postagens mais agressivas é quase sempre direcionado aos “amigos”,
ainda que em forma de ataques mais indiretos e imprecisos, até porque não temos
(mesmo) coragem de olhar nos olhos da outra pessoa, sem o intermédio da
desfaçatez da aparelhagem tecnológica que utilizamos como máscaras, como
personas, como disfarces. Inclusive, em nosso país isso nem é um fenômeno
recente a julgar por nosso hino nacional que já inicia de forma impessoal,
indireta e imprecisa: “OUVIRAM do Ipiranga...”. Mas quem ouviu? – “Ouviram!”
Nicolau Maquiavel em “O Príncipe” recomenda: “dividir para
governar”. A obra é uma espécie de tratado estratégico-político a ser seguido
pelo príncipe (autoridades) a fim de se manter no poder e sair vitorioso das
batalhas às quais o reino é submetido. A observação é um tanto quanto óbvia,
até porque gerenciar um grupo coeso é infinitamente mais complexo do que liderar
pessoas divididas, intoleráveis umas com as outras, parciais, partidárias, fechadas
ao diálogo e ao compartilhamento de ideias.
Nossos políticos são exímios seguidores do pensamento
maquiavélico. Entre eles, se arranjam de tal modo a aparentarem estar em lados
opostos e nos incitam a tomarmos partidos e nos impõem o jogo do “nós contra
eles”, onde o “eles”, o inimigo, é apenas aquela pessoa que pensa diferente de
mim, que possui uma ideologia diversa, que acredita em aspectos que abomino
etc. Infelizmente temos feito esse papel de fantoches. Não duvidem: aqueles que
dizem que os do outro lado são ” massa de manobra”, não percebem o quão foram
manobrados para repetir papagaiadas afirmações que, no fundo, servem apenas
para manter no poder, uma classe política suja, corrupta, desonesta,
teatralizada e que se borra de medo de ser pega com calças curtas.
Os protestos de 2013 foram um lampejo do que pode acontecer
quando dentro do “nós contra eles”, o “eles” é a própria classe de governantes
que temos, os quais se apressaram em desacreditar o movimento que clamava: “sem
partido!”. Eles sabem que quando as pessoas não tomam partido, na verdade elas
podem estar simplesmente querendo dizer que estão fartas de serem partidas,
espedaçadas, compartimentadas em caixinhas básicas dispostas à direita ou à
esquerda e utilizadas por grupos político-partidários para se manterem e/ou se
perpetuarem no poder.
Tais estratégias de descrédito dos movimentos de 2013 foram
centradas na destruição da imagem e da reputação dos manifestantes, acusando-os
de serem superficiais, acéfalos, apolíticos, alienados e, sobretudo, “massa de
manobra”. Como bons discípulos de Maquiavel, nossos políticos agiram rápido
para abafar o fenômeno que havia “acordado o gigante”. Deram-lhe doses
cavalares de calmantes ideológicos, mas esqueceram que todo anestésico, por
mais eficaz que seja, demora um pouco para fazer efeito e assim, levados pelo
calor do momento e pela pressa em oferecer alguma resposta ao enfurecido
gigante, acabaram aprovando uma série de medidas anticorrupção, que foi
justamente o que permitiu que surgissem investigações mais autônomas, onde a
mais famosa delas tem sido a Operação Lava-Jato que, não obstante algumas disfunções,
tem derrubado um poderoso e sedimentado
castelo de cartas políticas.
Minha esperança particular reside no conteúdo do pensamento
de Einstein que defende que “uma mente que se expande, nunca mais retorna ao
seu tamanho anterior”. Mesmo que o gigante tenha sido dopado, derrubado e
amarrado, está na memória que, um dia, ele já se levantou, que um dia, o povo
já se rebelou contra ser partido, fracionado, picado, esmigalhado.
Mas não dá pra tirar o mérito da maligna competência de
nossos governantes. Eles são bons em se manterem no poder e em nos manter dominados.
Simplesmente aproveitaram a energia que diariamente é gasta nas redes sociais e
nos dividiram ainda mais, polarizando toda e qualquer discussão política, ainda
que esteja claro que as saídas polarizadas são as piores possíveis. Nos fizeram
crer na dicotomia do contra ou a favor e nos separaram em rebanhos agressivos e
passamos a nos hostilizar entre nós mesmos, desviando assim o foco dos
verdadeiros lobos em pele de cordeiro que agem sorrateiramente nos eliminando.
Fomos separados em “coxinhas” e “mortadelas”. Curiosamente
iguarias que apresentam uma aparência por fora diferente da aparência interna
onde são recheadas com uma mistura. Ideias misturadas, desfiadas, trituradas,
condimentadas para disfarçar ou realçar sabores e saberes. Alimentados, por uma
ou por outra iguaria, não sentimos a fome do vazio interior que nos assola por
termos sido separados. Como cereja do bolo, transformaram cada recheio em
ojeriza aos amantes do recheio concorrente. Impediram que um lado provasse a “ração”
do outro lado. Fizeram-nos acreditar na verdade única e na certeza de que dela
somos detentores. E assim em pouco tempo estávamos novamente amansados, nos
distraindo uns com os outros e não atentos às ações em que eles se empenham
para continuar nos bastidores do poder, com suas pérfidas e improváveis
alianças, com suas negociatas e estratagemas de alto grau de sofisticação e,
sobretudo, com a encenação de que representam, cada um, um lado diferente da
moeda, uma visão alternativa do modelo, um luz no fim de um túnel sem saída.
Mas o “melhor” parece ter sido guardado para o “grand finale”.
Não bastasse terem nos dividido e enfraquecido, investiram pesado para nos
tornarem inimigos. Elevaram à enésima potência o conselho de Maquiavel
empregando-o de forma literal inclusive, e passaram a assistir nos digladiarmos
entre nós. Assim, não correm o risco de que ouçamos o que o outro nos tem a
dizer, não deixam que a curiosidade pelo saber o sabor do outro recheio
ideológico acentue nossa fome de querer mais, não nos permitem sermos plenos,
senhores de si, abertos às novidades e disponíveis ao diálogo construtivo que
certamente nos levaria, como já levou em algum momento, a nos perceber como
integrantes de um mesmo barco que afunda a poucos metros da ilha onde descansam
à beira-mar aqueles que dizem nos representar.
Como cura coletiva, apelo a um outro príncipe, um bem
pequeno em estatura, mas de grande porte real e que nos foi dado como presente
pelo Antoine de Saint-Exupéry. O pequeno príncipe sai de seu isolamento, de seu
pequeno planeta, em busca de amigos e encontra nas sábias palavras da raposa
que o essencial é invisível aos olhos, que somos corresponsáveis pelo mundo que
construímos e que é necessário relembrar a importância de criar laços, de nos
aproximarmos cada dia um pouco mais, de tornar o outro importante pelo tempo
que gastamos com ele e não contra ele.
Que tal trocarmos o amigo deletado de nossa rede de contatos,
que apenas pensa diferente da gente, pelo político que não será reeleito nas
próximas eleições?
Que tal renunciar à agressão verbal ao outro e dirigirmos
nossos protestos às câmaras e assembleias legislativas Brasil a fora?
Que tal olharmos com carinho para os que pensam diferente,
por mais difícil que seja, e buscar aqueles pontos em comum que todos temos?
Que tal sair das antiquadas caixinhas, dos recheios únicos e
das certezas absolutas?
Que tal respeitar o direito de fala, de argumento e de
exposição do pensamento do diferente?
Que tal???
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