“antigamente as coisas eram
‘preto ou branco’ ou ‘preto no branco’;
hoje, só de cinza há uns 50 tons”.
‘preto ou branco’ ou ‘preto no branco’;
hoje, só de cinza há uns 50 tons”.
Na semana passada ouvi uma
expressão que me chamou atenção. Diante da grande polarização do debate nos
mais variados campos, especialmente o da política, a pessoa, sensatamente, insistia
que deveríamos buscar as nossas “zonas de trégua”, sob pena de chegarmos ao
final do ano em guerra com pessoas que gostamos muito. Passei o resto da noite
e dos dias seguintes pensando nisso e resolvi escrever um pouco sobre isso. Mas
antes, quero dar três exemplos para embasar minha linha de argumentação...
(i) Meio sem querer acabei
inventando um bordão em minhas aulas que diz mais ou menos assim: “antigamente
as coisas eram ‘preto ou branco’ ou ‘preto no branco’; hoje, só de cinza há uns
50 tons”. O trocadilho é uma clara referência ao título do livro que tempos
atrás foi bestseller. Não li o livro,
mas assisti ao filme, e numa análise mais ampla e conceitual, a ideia é de que
existem inúmeras nuances para o nosso comportamento, sempre muito mais complexo
do que imaginamos.
(ii) Numa simplificação grosseira
da matemática, sabemos que quanto mais equações, graus, incógnitas e variáveis
existem, maiores são as dificuldades para a resolução dos problemas. Quem
chegou a estudar Pesquisa Operacional sabe que alguns cálculos são quase
impossíveis de se resolver sem a adoção de um algoritmo conhecido como “Método
Simplex”. Lembro que na graduação (de Administração) o professor, cansado de
nossas piadinhas que apelidaram o método de “complex”, decidiu um dia resolver
um sistema de três variáveis pelo método tradicional e precisou encher o quadro
branco duas vezes para chegar à solução. “Imagina”, perguntou ele, “se fossem 4
variáveis?!”, enfatizando que a dificuldade é exponencial, ou seja, cada
acréscimo afeta ainda mais o nível de dificuldade.
(iii) Um último exemplo, que
envolve os dois anteriores por se tratar tanto de uma questão comportamental
quanto matemática: quando você está sozinho (salvos casos patológicos de
múltiplas personalidades), não existe aí nenhuma relação interpessoal; contudo,
se aparece no contexto uma segunda pessoa, temos duas relações, uma de A para B
e outra de B para A; inserindo uma terceira pessoa esse número de relações
(variáveis) aumenta exponencialmente e passa para 13, ou seja, de A para B e (vice-versa),
de B para C e (vice-versa), de C para A (e vice-versa), além de A+B para C (e
vice-versa), B+C para A (e vice-versa) e C+A para B e (vice-versa), terminando
ainda com a própria relação que existe na interação A+B+C. E para os mais
puritanos que dirão que, por exemplo, A+B ou A+B+C já formam um grupo e que,
portanto, não seriam mais relações “interPESSOAIS”, a ideia aqui é destacar
aquela personalidade que surge quando A e B estão juntos, que é diferente das
personalidades isoladas de A e B. Exemplo prático: o marido que é uma coisa na
frente da esposa e outra na frente dos amigos. Não vou nem fazer os cálculos se
no contexto surgir uma quarta, quinta, sexta pessoa... acredito que já tenha
ficado claro a ideia de exponencialidade da complexidade do aumento de
variáveis.
Pois bem, é razoável admitir que,
em geral, o conflito tenha menor potencial quanto menor for o número de
variáveis. É isso que nos faz, naturalmente, querer reduzir o maior número de
incertezas em nossas vidas. Pensar em muitas coisas ao mesmo tempo pode ser bem
estressante, complexo e trabalhoso.
Na vida real, para tudo, existem
luzes e sombras. Mesmo que a multiplicidade de pensamentos tenha o potencial de
enriquecer nosso conhecimento (luz), a nossa sombra, o nosso lado oculto, tende
a querer reduzir essa multiplicidade ao máximo para não ter o trabalho de
processar tantas informações decorrentes de tantas variáveis. E é isso que nos
faz, mesmo sendo óbvio que existam 50 tons ou mais de cinza, que insistamos em
reduzir tudo ao preto e ao branco, ou até mesmo a uma cor só, num
monocromatismo irreal, porém de fácil gerenciamento.
Sabendo dessa nossa tendência de procurar
o mais simples ainda que utópico, as organizações de um modo geral, as grandes
corporações e os partidos políticos, principalmente, se aproveitam disso para
gastar menos “energia” e conseguir nos manipular muito mais facilmente e por um
menor custo. Gerenciar poucas variáveis é sempre muito mais barato.
Mas isso não é novidade.
Maquiavel (1469-1524) já sabia disso séculos atrás e sugeria como preceito de
liderança: “dividir para governar”. E pelas colocações matemáticas que fiz
percebe-se que dividir em dois blocos é tanto útil para governar, quanto também
é menos complexo e mais barato.
O sistema de algoritmos do
Facebook, por exemplo, que faz com que vejamos cada vez mais de um assunto que
nos interesse é bem eficiente mas, se oferecer alternativas demais, torna-se
mais complexo, caro e de difícil administração. Desta forma, a solução é
dividir o que nos é apresentado em dois grandes blocos: aquilo em que
acreditamos; e algo considerado como oposto, isolando os extremos e nos fazendo
acreditar que só existem o preto e o branco, relegando assim, ao nimbo virtual,
os 50 tons de cinza, as diversas nuances que são nosso real comportamento, até
porque, como diz Leonardo Boff, todo “ponto de vista é apenas a vista de um
ponto”. Mas é “caro” demais gerenciar tantos pontos de vista.
Os partidos políticos são ainda
mais engenhosos e manipulativos. Desde muito tempo já perceberam que se o povo
estiver dividido sempre em dois grandes blocos, um contra o outro na linha bem
convencional do “nós contra eles”, facilmente será manipulado. Percebam que até
o regime de segundo turno das eleições favorece “coincidentemente” essa
polarização. Será mesmo coincidência? Eles sabem que uma hora o bloco que
lideram irá ganhar e em outras horas irá perder. Mas irão perder aquelas
eleições especificamente e não o que lhes mais interessa: o poder. O povo,
distraído na briga do lado A contra o lado B (e vice-versa), acaba não
percebendo que eles estão coesos, independentes de posições partidárias, até
porque o que querem não é o bem estar do povo, mesmo porque esse bem estar
complica a vida deles, pois as necessidades se sofisticam e eles ou oferecem
mais ou perdem poder. Nessa lógica, Maquiavel também disse: “o mal faça de uma
vez; o bem faça aos poucos”. Eles, os políticos, sempre foram alunos muito
aplicados dessa lição. É preciso fazer algum bem, mas criando dependências,
para que o povo, ao receber “migalhas”, fique sempre na esperança do “pão”, dos
“salvadores da pátria”, dos “mitos”, do “nunca antes na história desse país”.
Se assistirem aos debates eleitorais com mais atenção perceberão que o discurso
gira sempre em quem ofereceu mais migalhas e quem promete mais pão.
Volto agora à história das “zonas
de trégua” ou daquilo que a teoria de grupos sociais chama de “elementos de
identidade”. Se as corporações, redes sociais e partidos políticos insistem
tanto em enfatizar as diferenças, demonizando o “outro lado”, para que sejamos
mais facilmente manipulados, uma forma de, verdadeiramente, protestar contra
isso tudo seria buscar no outro aquilo que nos une, aquilo que temos em comum,
nem que sejam nossos medos, nossos traumas, nossas desilusões. Nada é mais forte
do que um grupo coeso. Eles, os políticos, estão sempre em número menor, mas se
mantêm no poder justo porque há uma unidade entre eles, apesar de teatralizarem
que são diferentes entre si.
Enquanto isso, nós estamos excluindo
amizades, brigando em família, agredindo-nos uns aos outros, física ou
verbalmente e, principalmente, nos forçando a caber em uma das duas caixas que
eles nos oferecem. Nossa emancipação passa por manter nossa integridade, nossa
personalidade, nosso pensamento, nossos valores e, apesar deles, acolher os
jeitos de serem, de pensarem e de agirem dos outros. Até Jesus já dizia que não
há muito mérito em amar apenas a quem nos ama. Amar é, antes de tudo, um
comportamento, meu para com os outros, para com os diversos “outros” que são
diferentes de mim. Se assim não for, seremos sempre peças no jogo de xadrez dos
poderosos, peças (de um das duas cores) que voltam ao final sempre para uma
única e mesma caixa: a dos divididos, desorganizados, e automutiláveis.
“Vem pra caixa você também!” Está
na hora de trocar o fim desse conhecido (e subliminar) slogan, por um
redundante “Não!”
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