sábado, 29 de abril de 2017

COXINHAS E MORTADELAS: sobre a diferença entre o príncipe de Maquiavel e o príncipe de Exupéry.



Em tempos de tensão política extrema, catalisada pelo poder de alcance das redes sociais, é até normal que alguns de nós tenhamos exagerado em nossos posicionamentos ideológicos. Contudo, ser um pouco mais enérgico, vez ou outra, é típico do debate político e, desde que restrito a dados momentos, contextos e ações não violentas, é não só aceitável como libertador, afinal de contas, ninguém deveria ser obrigado a acatar, calado, opiniões diferentes da sua.

Mas o que temos visto atualmente sai da curva de normalidade da tradição do debate político. As discussões se dão a qualquer momento, em quaisquer contextos e vêm carregadas de sentimentos de ódio, e o que é pior, projetadas em direção a “amigos”, que passam a ser personificados como “inimigos”.

Analisando minha timeline no Facebook e as seções de comentários nas mídias digitais, é notório como o conteúdo das postagens mais agressivas é quase sempre direcionado aos “amigos”, ainda que em forma de ataques mais indiretos e imprecisos, até porque não temos (mesmo) coragem de olhar nos olhos da outra pessoa, sem o intermédio da desfaçatez da aparelhagem tecnológica que utilizamos como máscaras, como personas, como disfarces. Inclusive, em nosso país isso nem é um fenômeno recente a julgar por nosso hino nacional que já inicia de forma impessoal, indireta e imprecisa: “OUVIRAM do Ipiranga...”. Mas quem ouviu? – “Ouviram!”

Nicolau Maquiavel em “O Príncipe” recomenda: “dividir para governar”. A obra é uma espécie de tratado estratégico-político a ser seguido pelo príncipe (autoridades) a fim de se manter no poder e sair vitorioso das batalhas às quais o reino é submetido. A observação é um tanto quanto óbvia, até porque gerenciar um grupo coeso é infinitamente mais complexo do que liderar pessoas divididas, intoleráveis umas com as outras, parciais, partidárias, fechadas ao diálogo e ao compartilhamento de ideias.

Nossos políticos são exímios seguidores do pensamento maquiavélico. Entre eles, se arranjam de tal modo a aparentarem estar em lados opostos e nos incitam a tomarmos partidos e nos impõem o jogo do “nós contra eles”, onde o “eles”, o inimigo, é apenas aquela pessoa que pensa diferente de mim, que possui uma ideologia diversa, que acredita em aspectos que abomino etc. Infelizmente temos feito esse papel de fantoches. Não duvidem: aqueles que dizem que os do outro lado são ” massa de manobra”, não percebem o quão foram manobrados para repetir papagaiadas afirmações que, no fundo, servem apenas para manter no poder, uma classe política suja, corrupta, desonesta, teatralizada e que se borra de medo de ser pega com calças curtas.

Os protestos de 2013 foram um lampejo do que pode acontecer quando dentro do “nós contra eles”, o “eles” é a própria classe de governantes que temos, os quais se apressaram em desacreditar o movimento que clamava: “sem partido!”. Eles sabem que quando as pessoas não tomam partido, na verdade elas podem estar simplesmente querendo dizer que estão fartas de serem partidas, espedaçadas, compartimentadas em caixinhas básicas dispostas à direita ou à esquerda e utilizadas por grupos político-partidários para se manterem e/ou se perpetuarem no poder. 

Tais estratégias de descrédito dos movimentos de 2013 foram centradas na destruição da imagem e da reputação dos manifestantes, acusando-os de serem superficiais, acéfalos, apolíticos, alienados e, sobretudo, “massa de manobra”. Como bons discípulos de Maquiavel, nossos políticos agiram rápido para abafar o fenômeno que havia “acordado o gigante”. Deram-lhe doses cavalares de calmantes ideológicos, mas esqueceram que todo anestésico, por mais eficaz que seja, demora um pouco para fazer efeito e assim, levados pelo calor do momento e pela pressa em oferecer alguma resposta ao enfurecido gigante, acabaram aprovando uma série de medidas anticorrupção, que foi justamente o que permitiu que surgissem investigações mais autônomas, onde a mais famosa delas tem sido a Operação Lava-Jato que, não obstante algumas disfunções,  tem derrubado um poderoso e sedimentado castelo de cartas políticas.

Minha esperança particular reside no conteúdo do pensamento de Einstein que defende que “uma mente que se expande, nunca mais retorna ao seu tamanho anterior”. Mesmo que o gigante tenha sido dopado, derrubado e amarrado, está na memória que, um dia, ele já se levantou, que um dia, o povo já se rebelou contra ser partido, fracionado, picado, esmigalhado. 

Mas não dá pra tirar o mérito da maligna competência de nossos governantes. Eles são bons em se manterem no poder e em nos manter dominados. Simplesmente aproveitaram a energia que diariamente é gasta nas redes sociais e nos dividiram ainda mais, polarizando toda e qualquer discussão política, ainda que esteja claro que as saídas polarizadas são as piores possíveis. Nos fizeram crer na dicotomia do contra ou a favor e nos separaram em rebanhos agressivos e passamos a nos hostilizar entre nós mesmos, desviando assim o foco dos verdadeiros lobos em pele de cordeiro que agem sorrateiramente nos eliminando. 

Fomos separados em “coxinhas” e “mortadelas”. Curiosamente iguarias que apresentam uma aparência por fora diferente da aparência interna onde são recheadas com uma mistura. Ideias misturadas, desfiadas, trituradas, condimentadas para disfarçar ou realçar sabores e saberes. Alimentados, por uma ou por outra iguaria, não sentimos a fome do vazio interior que nos assola por termos sido separados. Como cereja do bolo, transformaram cada recheio em ojeriza aos amantes do recheio concorrente. Impediram que um lado provasse a “ração” do outro lado. Fizeram-nos acreditar na verdade única e na certeza de que dela somos detentores. E assim em pouco tempo estávamos novamente amansados, nos distraindo uns com os outros e não atentos às ações em que eles se empenham para continuar nos bastidores do poder, com suas pérfidas e improváveis alianças, com suas negociatas e estratagemas de alto grau de sofisticação e, sobretudo, com a encenação de que representam, cada um, um lado diferente da moeda, uma visão alternativa do modelo, um luz no fim de um túnel sem saída. 

Mas o “melhor” parece ter sido guardado para o “grand finale”. Não bastasse terem nos dividido e enfraquecido, investiram pesado para nos tornarem inimigos. Elevaram à enésima potência o conselho de Maquiavel empregando-o de forma literal inclusive, e passaram a assistir nos digladiarmos entre nós. Assim, não correm o risco de que ouçamos o que o outro nos tem a dizer, não deixam que a curiosidade pelo saber o sabor do outro recheio ideológico acentue nossa fome de querer mais, não nos permitem sermos plenos, senhores de si, abertos às novidades e disponíveis ao diálogo construtivo que certamente nos levaria, como já levou em algum momento, a nos perceber como integrantes de um mesmo barco que afunda a poucos metros da ilha onde descansam à beira-mar aqueles que dizem nos representar.

Como cura coletiva, apelo a um outro príncipe, um bem pequeno em estatura, mas de grande porte real e que nos foi dado como presente pelo Antoine de Saint-Exupéry. O pequeno príncipe sai de seu isolamento, de seu pequeno planeta, em busca de amigos e encontra nas sábias palavras da raposa que o essencial é invisível aos olhos, que somos corresponsáveis pelo mundo que construímos e que é necessário relembrar a importância de criar laços, de nos aproximarmos cada dia um pouco mais, de tornar o outro importante pelo tempo que gastamos com ele e não contra ele. 

Que tal trocarmos o amigo deletado de nossa rede de contatos, que apenas pensa diferente da gente, pelo político que não será reeleito nas próximas eleições?

Que tal renunciar à agressão verbal ao outro e dirigirmos nossos protestos às câmaras e assembleias legislativas Brasil a fora?

Que tal olharmos com carinho para os que pensam diferente, por mais difícil que seja, e buscar aqueles pontos em comum que todos temos?

Que tal sair das antiquadas caixinhas, dos recheios únicos e das certezas absolutas?

Que tal respeitar o direito de fala, de argumento e de exposição do pensamento do diferente?

Que tal???

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