Na semana que antecedeu a votação pelo prosseguimento do
processo de impeachment de Dilma pela Câmara dos Deputados, eu recebi um
convite pra ser debatedor em um encontro de formação política. Segundo me informaram,
queriam um debate com vertentes ideológicas diferentes e precisavam de alguém
de direita, com pensamento neoliberal e, supostamente, eu preenchia os
pré-requisitos.
Obviamente achei graça e expliquei, ainda por telefone, que
não acreditava nessa bipolaridade esquerda/direita, principalmente nos dias
atuais. Quase na mesma semana me
disseram inclusive que, se eu não acredito nisso, então é mais uma prova de que
sou "de direita". Outra pessoa, utilizando o mesmo pseudo argumento
usou palavra pouco elogiosa, que não vem ao caso.
Durante o debate, essa ideia retornou no seguinte comentário:
"quando não nos posicionamos, os outros nos posicionam". Mas quando
esse pensamento é expresso dentro da lógica de que só existem apenas dois
lados, leva-nos a conclusão pueril de que "se você não está comigo, então
está contra mim".
Percebe-se claramente que é um argumento frágil, baseado em duas
suposições simplórias, pouco elaboradas e notadamente falsas: (i) a de que
existem apenas dois lados; e (ii) que o não posicionamento pró-lado A, faz de
você um fantoche do lado B. Quando se diminui tanto o campo de análise, não dá
pra levar a sério tais "posicionamentos". Como efeito espetaculoso pode
até ser sensacional a depender das crenças do grupo, mas é apenas isso, um
truque de efeito para fazer exatamente aquilo de que acusa o outro lado, o
nosso famoso "faça o que eu digo mas não faça o que eu faço".
Mesmo assim, apesar de pedidos contrários, aceitei o convite
e comecei minha participação no debate dizendo exatamente o que já havia
comentado por telefone: "não acredito em direita/esquerda etc." Em
complemento disse: "antigamente as coisas eram ou preto e branco ou preto
no branco, hoje em dia, só de cinza tem 50 tons", em clara e bem humorada referência
ao bestseller da E.L. James.
Alguns obviamente pensaram que eu estava brincando. Embora
eu houvesse recorrido a uma tirada de humor, ela reflete não menos do que a
verdade. Em Administração tínhamos duas vertentes básicas, a organização vista
ou como máquina ou como organismo, e hoje temos dezenas de modelos teóricos
divergentes e convergentes. Um amigo psicólogo me contou que existem cerca de
196 configurações diferentes catalogadas sobre o que seria uma família e tem
gente que acha que família é uma equação exata cujo resultado é pai, mãe e
filhos. Numa conversa que tive com um grupo de pesquisa sobre a elaboração de
um questionário, a pergunta que antigamente tinha duas respostas fechadas,
"homem" ou "mulher", hoje, para permanecer com respostas
fechadas vai precisar de várias opções possíveis. Até a empadinha, cujos
sabores básicos eram camarão ou queijo, hoje se apresenta com uma imensa gama
de ingredientes alternativos para o recheio, o mesmo acontecendo com pastéis,
tapiocas e coxinhas (entenda-se aqui "coxinha" como aquele salgado
saboroso, preferência nacional).
Absurdo é precisar esclarecer a palavra "coxinha".
Querem muitas vezes, disse eu no debate, classificar-nos como
"coxinhas" ou "petralhas". Aí me pergunto: se nosso
argumento é bom, se nossa base teórica é inspirada nas mais clássicas e
conceituadas obras já publicadas, se não nos deixamos levar por mídia
"golpista" ou "esquerdista" (mais rótulos!), se estamos
assim tão certos de nossas convicções, qual a necessidade que temos de diminuir,
de dar um tratamento vulgar de inferioridade à visão que é diferente da nossa?
Por outro lado, a Psicologia afirma que a agressão gratuita é um subterfúgio
muito utilizado quando estamos inseguros. Agredimos, porque sabemos que nossas
ideias são insuficientes. O famoso "ganhar no grito".
Dito isto, como era um encontro de formação política, e não
um "ato" de defesa do que quer que seja, fui ao meu argumento central
que, acredito, responde até à perrenga do uso dos agressivos e inúteis termos
"coxinha" e "petralha": o problema é que, no fundo, não
sabemos praticamente nada sobre política (reparem que estou falando na terceira pessoa
do plural, justo para evitar que achem que estou me colocando acima do bem ou
do mal). Não lemos sobre o assunto, não nos formamos sobre o tema, não
recorremos aos autores que discutem seriamente a questão, nem os clássicos e
nem os contemporâneos. Pior que isso, não entendemos a fundo e acusamos os
outros de não entenderem. Cada vez mais concordo com o pensamento de Jüng, de
que vemos nos outros aquilo que existe dentro de nós.
Assim, para entendermos o que está acontecendo no campo
político brasileiro, recorrer a Marx, Engels, Fourier, Owen, Smith, Locke,
Voltaire, Montesquieu, dentre outros, é completamente inútil. A grande maioria
nunca leu nada, de verdade, sobre esses autores. Uma parcela pequena, às vezes,
leu na faculdade uma resenha de algum autor obscuro sobre essas questões de
matriz ideológicas e só. Aqueles que leram a fundo, que foram nas obras
originais, que confrontaram as ideias de ambos os lados, ah, esses são mais
raros que pokemons valiosos.
Não entendemos de política. Ponto. Mas de uma coisa
entendemos bem. Somos ótimos em "DR" (discutir a relação). Quando não
temos uma habilidade, a necessidade nos faz recorrer a outras que temos em
maior quantidade. Daí a razão das nossas timelines
do Facebook, por exemplo, estarem cheias de trocas de farpas, insultos e agressões,
em grande parte desprovida de qualquer lógica ou coerência que não a do "querer
estar certo sempre".
Assim, se nossa especialidade, mesmo discutindo política, é
em DR, melhor do que recorrer àqueles autores citados acima é usar como base
teórica, "filósofos" mais modernos como Wesley Safadão, Marília
Mendonça e Pablo. Isso mesmo! Foi isso que você leu. Vejamos alguns exemplos.
"Como é que você ainda tem coragem de falar comigo?
Além de não ter coração, não tem juízo
Fez o que fez e vem me pedir pra voltar?
Você não merece um por cento do amor que eu te dei
Jogou nossa história num poço sem fundo
Destruiu os sonhos que um dia sonhei
Quer saber? Palmas pra você!
Você merece o título de pior mulher do mundo! (SAFADÃO, 2014)
Além de não ter coração, não tem juízo
Fez o que fez e vem me pedir pra voltar?
Você não merece um por cento do amor que eu te dei
Jogou nossa história num poço sem fundo
Destruiu os sonhos que um dia sonhei
Quer saber? Palmas pra você!
Você merece o título de pior mulher do mundo! (SAFADÃO, 2014)
Só tente pensar numa situação diferente de uma briga de
casal. Pense nas discussões ideológicas que têm visto no Facebook ultimamente.
Imagine políticos, partidos, eleições e... duvido que não tenha percebido
raciocínios similares na rede. Mas vamos a outro exemplo. Esse um dos meus
preferidos. Se põe a culpa em tudo e em todos, mas nunca se põe em dúvida sua
própria (in)competência.
"Você foi a culpada desse amor se acabar
Você quem destruiu a minha vida
Você que machucou meu coração, me fez chorar
E me deixou num beco sem saída" (PABLO, 2013)
Você quem destruiu a minha vida
Você que machucou meu coração, me fez chorar
E me deixou num beco sem saída" (PABLO, 2013)
Agora um trecho que considero dos mais doentios. Tente
seguir minha proposta de raciocínio, de abstrair e aplicar a lógica do
pensamento à "política de Facebook":
"Mas se você soubesse o que realmente me interessa
É saber se você faz amor comigo como faz com ela
Se quando beija, morde a boca dela [sic]
Fala besteira no ouvido, como faz comigo
Tudo o que eu preciso
É saber se você faz amor comigo como faz com ela" (MARÍLIA MENDONÇA, 2015).
É saber se você faz amor comigo como faz com ela
Se quando beija, morde a boca dela [sic]
Fala besteira no ouvido, como faz comigo
Tudo o que eu preciso
É saber se você faz amor comigo como faz com ela" (MARÍLIA MENDONÇA, 2015).
Eu não consigo ouvir essa música e não me lembrar de alguns
argumentos que vi. É mais importante saber como o outro lado age do que como eu
próprio ou o lado que eu defendo age. Mais fácil enxergar o cisco no olho do
outro do que o pedaço de madeira que está nos nossos próprios olhos.
Particularmente acredito que, enquanto continuarmos
personalizando a discussão política como fazemos com nossos relacionamentos
pessoais, teremos um longo caminho pela frente. Precisamos entender que a
personalização nas DRs é algo perfeitamente normal, as DRs são personalizadas.
Mas isso na política? Não faz sentido. Até porque, muitos amigos acabam com
relações estremecidas, enquanto os políticos fazem alianças obscuras.
Informação quentinha: apesar desse acirramento todo que estamos vendo, em 30%
das nossas cidades, PT, PMDB e PSDB estão, coligados (isso mesmo, os três
juntos!!!), nas atuais eleições municipais. Agora me diz se faz sentido, chamar
de "burro" como acabei de ver num perfil do Facebook, qualquer um que
pense diferente de você sobre política. Me pergunto: que traumas e carências
psicológicas tão profundas nos fazem agredir amigos por divergência de pensamento
político?
A boa notícia disso tudo é que, as pessoas estão, bem ou
mal, discutindo muito mais sobre o tema e, espero eu, não tardarão a buscar
argumentos mais sólidos e confiáveis e menos emotivo-pessoais. O outro aspecto
positivo que percebo, é o fortalecimento daquilo que chamamos de amizades
verdadeiras. Particularmente fico muito feliz ao perceber que boa parte de meus
melhores amigos pensam completamente diferente de mim. E ainda assim somos
grande amigos. E isso não significa que não falamos sobre o assunto ou não
expomos um ao outro nosso ponto de vista. Ao contrário, fazemos isso até bastante,
mas com a certeza de que "uma coisa é uma coisa; e outra coisa é outra
coisa". Essa magia que nos une, esse respeito mútuo, essa capacidade de
lidar com o diferente é que me faz acreditar que, apesar de tudo, estamos
evoluindo.
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