Até nos contos a música está
associada a encantamento. O flautista de Hamelin e o canto da sereia são uma
prova disso. Nos últimos tempos, a indústria do entretenimento tem percebido o
poder de juntar em um mesma história, personagens de diversas narrativas. A
mais esperada por esses dias é o lançamento do filme "Batman Vs Superman:
a origem da justiça". Isso me fez pensar como poderia ser um conto onde o
flautista e a sereia divergissem entre si quanto ao que fazer com as crianças
de Hamelin. Importante lembrar que nas narrativas originais o flautista, a
princípio visto como um mercenário, acaba por libertar as crianças de uma
sociedade corrupta. Já a sereia, apesar de seu encantamento, levava os
aventureiros do mar para o fundo das águas onde padeciam. Eis o resultado desse
meu pensamento:
Flautista Vs Sereia: a origem do
(des)encantamento
Era uma vez, um pequeno grande
vilarejo. Apesar de não serem muitos os que ali moravam, o mundo todo estava
ali contido. Na verdade, cada habitante de Hamelin, era um universo em
particular.
Parte da cidade vivia nas sombras
e nem tomava conhecimento da existência de sua outra metade. Outra parcela da
sociedade hameliniana habitava lugares que de tão iluminados não permitiam perceber
a escuridão onde sua outra metade vivia.
Certo dia, algumas crianças da
luz, descobriram, enquanto brincavam de pipa, bola e pião, um grande relógio
antigo, parado, maior do que eles, que era na verdade uma passagem para um
túnel que levava ao mundo da escuridão.
Ao abrirem a passagem, levaram
luz para dentro do túnel e permitiram que habitantes das sombras conhecessem a
luz e que os filhos da luz descobrissem as trevas da escuridão. O resultado
dessa descoberta modificou completamente o modo de vida de ambos os povos. Eles
acabaram por se perceber como criaturas de luz e de sombras.
Uma outra consequência do túnel
aberto pela curiosidade infantil, foi a de que a luz assustou os ratos que
viviam escondidos na escuridão, ratos com os quais os moradores desse lado
sombrio haviam aprendido a conviver, até porque a falta de luz não os permitia
enxergar a aparência asquerosa dos
animais. O resultado foi uma invasão de ratos por toda a cidade.
Apavorados, uns pela descoberta
da existência e outros pela descoberta da aparência dos ratos, os membros da
cidade, se reuniram em conselho. Alguém sugeriu que procurassem ajuda
profissional, alguém que com sua arte pudesse varrer de suas vidas os ratos que
tanto incomodavam.
A indicação não podia ser mais
clara: eles precisavam de um mago, um mago artista, um flautista conhecido,
enfim, sugeriu um dos presentes. Seu tratamento para os nossos ratos seria a
música, defendeu aquele que conhecia os benefícios daquela terapia pela arte.
Alguns estranharam mas acabaram convencidos pelos entusiastas da ideia. A única
coisa que pareceu desagradar a maioria foi o fato do flautista cobrar por sua
arte. Acharam absurdo terem que pagar pelo tratamento-arte. Mas a emergência da
situação não permitia mais delongas.
E assim o flautista conhecido
iniciou seu trabalho de, com a música de sua flauta, dar sumiço a cada um dos
ratos da cidade. Chegou então o momento do pagamento. A cidade em conselho
decidiu que as 30 moedas de prata prometidas ao flautista eram muito. Ele
apenas havia usado sua flauta, sua arte, para de forma simples e sem muito
trabalho ganhar tanto. Deram-lhe três moedas de prata e até escarneceram dele,
mandando que ele procurasse algo mais sério para fazer na vida.
Ao ouvir isso, com ódio da
cidade, porém com pena das crianças que um dia se tornariam tão corruptas
quanto os adultos, decidiu usar sua arte para salvar aquelas crianças da
crueldade daquele mundo que habitavam. Aos poucos as crianças foram se
rebelando, tendo vontade própria, perguntando, questionando, brincando e
sorrindo como nunca antes. A cada dia que passava se tornavam seres mais
completos, conscientes de seus aspectos luminosos e sombrios, o que lhes dava a
oportunidade até, de viver sua completude. Estavam em perfeita comunhão com
Deus e com o universo.
Só que essas crianças começaram a
crescer e suas perguntas e coragem passaram a incomodar cada vez mais os
membros da cidade. Se antes a infestação havia sido de ratos da escuridão,
agora a claridade do pensamento dessas novas crianças se tornava uma ameaça
ainda maior. As crianças não aceitavam qualquer desculpa, não se deixavam
iludir por falsas promessas e sempre, sempre, buscavam novas maneiras de fazer
mais, melhor e mais belo.
Reuniram-se pois, novamente em
conselho, e acataram que seria necessário adotar medidas mais drásticas quanto
àquelas crianças que chamavam de indolentes. Sugeriram que elas precisariam ser
medicadas urgentemente para se comportarem de maneira adequada e sensata.
Alguém indicou uma sereia que havia feito grandes avanços em suas pesquisas
sobre o comportamento humano, mesmo ela não sendo completamente humana. A
sereia que gostava de ser tratada como "doutora", conseguiu
encapsular a felicidade presente em sua voz
e em seu canto. Em forma de pequenos comprimidos, administrados
regularmente, o revolucionário medicamento garantiria a paz e a tranquilidade
do sono de todos os habitantes da cidade, especialmente das crianças que,
diziam, pensavam demais.
O custo seria muito alto, mas
alguém no conselho advogou que a ciência é cara, mas que é a maneira mais eficiente
de resolver o problema. Um outro conselheiro chegou a afirmar que o problema
todo começou porque eles investiram em soluções baratas como a do artista
ingrato que apenas tocava flauta e que nunca havia sido uma pessoa estudada.
Diante dessa argumentação, os conselheiros constataram que a única saída seria
contratar a Dra. Sereia, custasse o que custasse.
As crianças passaram a receber
doses cada vez maiores das "pílulas de felicidade", e aos poucos,
todas passaram a se comportar de maneira semelhante e, sobretudo, sem aquela
rebeldia e energia típicas que tanto incomodavam os adultos. E a cidade parecia
feliz. Tudo que não era adequado era colocado na parte escura da cidade onde
ninguém perceberia nada. Assim, cada cidadão ficava à vontad para publicar toda
a sua suposta "luminosidade" nas rodas sociais que participavam. De
tão luminosos passaram a enxergar menos, pois eram ofuscados uns pelos outros.
Mas se percebiam felizes e faziam filas todos os meses à porta da sereia para
ouvir seu canto e tomar mais de suas pílulas, embora enxergassem cada vez
menos, se movimentassem cada vez menos, rissem cada vez menos, fossem cada vez
menos humanos.
Só que no fundo da alma de cada uma daquelas
crianças-luz, um som de flauta, a medida que iam perdendo a visão, parecia se
tornar mais forte. Só que agora essa música não vinha mais de fora, mas de
dentro da alma de cada uma delas. A pílula da sereia só funcionava para aquilo
que vinha de fora. E a cidade começou a sorrir de novo...
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