Continuando a série "Contos
da Lua": lua cheia no céu; postagem nova da série no blog.
E essa é uma lua especial, a
primeira lua cheia dessa primavera. Penso que algumas pessoas têm fases como as
determinadas pela lua, enquanto outras têm estações como as determinadas pelo
sol. Umas se guiam pela rotação, outras pela translação. Mas todas estão sempre
em movimento. Não podemos dizer que tudo no mundo gira em torno de encontrar
alguma coisa, mas algumas coisas, quando encontradas, fazem o mundo da gente
girar, se movimentar, e a partir daí, nada mais é como foi antes. Passamos a
enxergar o mundo com os olhos da alma, do coração. E nesse momento tudo fica
muito claro, iluminado, vivo...
Este preâmbulo não é aleatório,
desconexo ou acidental. É uma reflexão minha a partir de uma das histórias que
a lua me contou e que escolhi hoje, propositadamente, para homenagear esse
início de primavera, tempo de vida nova, de renascimento, de perdão, de busca
pela felicidade. Mas não a felicidade vazia vendida pelas propagandas de
produtos mil, mas aquela felicidade que faz nosso coração vibrar, felicidade
que preenche nossos vazios. Felicidade até inconsequente. Mas, e daí? Por que
mesmo pensar tanto nas consequências se tudo passa tão rápido? Até porque toda
decisão tem sempre consequências queiramos ou não.
Essa semana, por exemplo, fui a um
mercadinho. Minha intenção: comprar uma água de coco. O dono chorava
copiosamente quando lá entrei. A funcionária nos explicou que ele acabara de
receber a notícia da morte do pai. A cena me comoveu, até porque duas senhoras
que estavam na fila comigo conversavam entre si dizendo que ele, o dono, estava
todo sorridente poucos minutos antes. A primeira coisa que pensei foi como o
tempo foge, voa rápido e imediatamente pensei também no pai morto e fiz uma
prece, talvez inútil dada as circunstâncias, já que a vida dele acabara, mas eu
pedi que ele tivesse optado em vida pelo que fazia o coração dele vibrar.
Talvez a prece nem fosse mesmo por ele, mas por mim e pelo mundo, porque certamente
quando nos dermos conta do que temos feito com a vida que recebemos de
presente, de certo não serão os fatos convenientes, confortáveis, respeitáveis,
aceitáveis socialmente e honrosos que nos darão a certeza de plenitude, de
completude, enfim, de vida. Mas de certo lembraremos daquilo que fez nosso
coração vibrar, que nos deixou sem ar, que nos fez tremer, enfim, daquilo que
fez a gente se movimentar, tal como o sol, tal qual como a lua. Ah, e por falar
em lua, vamos enfim ao conto desta lua cheia.
A lua muito me surpreendeu com
essa história que ora relato. Ela me disse: "vou te contar uma história
que você já conhece, mas vou contar como tudo realmente aconteceu". Fiquei
intrigado com esse comentário lunar, mas ela me explicou que eu já conhecia a história
porque ela havia sido registrada na bíblia. A história de um cego de nascença,
curado por Jesus com lama feita de barro e saliva. De imediato me lembrei que a
passagem está no evangelho de João, o mais místico e poeta dentre os
evangelistas, e que trata o fato como um dos sinais de Jesus. Para João não
havia milagres, havia sinais.
Na minha espontaneidade, querendo
demonstrar meus conhecimentos bíblicos citando como o fato aconteceu, acabei
desobedecendo, como brinca um amigo meu, o décimo primeiro mandamento:
"não te empolgarás!" A lua, complacente, sorriu maravilhosamente (o
sorriso da lua é encantador) e me disse que nem sempre é possível registrar
todos os detalhes na bíblia, mas que ela foi testemunha de todo o processo que
levou aquele homem cego a enxergar a luz. Achei estranho a lua utilizar a
palavra "processo", mas se tem uma coisa que eu aprendi com a lua, é
que ela tem sempre razão, e então, com empolgação já moderada, me calei para
ouvir seu conto.
A lua, inusitadamente, fez
questão de pontuar o período do ano em que a cura começou a ocorrer. Era início
da primavera. O homem vinha de um inverno angustiante. Ao ouvir um casal de
namorados enaltecendo a beleza do mundo e que essa beleza fazia os corações
apaixonados deles vibrarem em sincronia, o homem percebeu que sua vida até
então era desprovida dessa vibração e, consequentemente, desprovida de sentido.
O que ele via não o deixava feliz.
Nessa hora eu interrompi a lua e
a indaguei: "Como assim, 'o que ele via...'? Ele não era cego?". A lua
sorriu para mim e disse: "Não foi você mesmo que afirmou que João era o
mais poeta dos evangelistas? Luiz, a cegueira do homem não era nos olhos
físicos, mas nos olhos da alma".
Diante agora dos meus olhos (arregalados)
a lua prosseguiu triunfante. Me contou ela que o homem decidira a todo custo
que iria enxergar. Foi quando ouviu falar de um nazareno poderoso que por ali
passaria. Foi ao seu encontro, exausto de uma vida sem vida, e pediu ajuda a
Jesus, que perguntou: "O que você quer que eu faça?" Ao que cego
pediu: "Senhor, quero enxergar a alegria da vida!". Jesus então
sorriu e disse que isso aconteceria, mas que não seria de imediato... Quando eu
já me preparava para protestar, afinal de contas a cura, até onde eu sabia
havia sido quase imediata, a lua, já conhecendo minhas
"instabilidades", me explicou que o tempo bíblico é diferente, é o
tempo suficiente, o tempo necessário, o tempo que tem seu próprio tempo. E
assim deveria ser também o tempo da vida, pensei eu.
Prometi a mim mesmo não mais
intervir, afinal de contas, ela havia presenciado tudo. A lua então continuou
sua história me dizendo que Jesus ao fazer lama com barro e saliva e colocar
nos olhos do "cego", estava simbolicamente dizendo para ele que a
falta de visão era porque ele estava sujo e precisava se limpar, precisava
tirar as máscaras que cobriam seus olhos, tudo aquilo enfim, que o impedia de
enxergar. Mandou o "cego" à piscina de Siloé lavar-se, e nessa hora o
homem entendeu que precisava lavar sua alma, fazer uma completa faxina em si
mesmo.
Atravessou toda aquela primavera
feliz com a perspectiva da mudança, entrou no verão onde as altas temperaturas
ao mesmo tempo que dão ânimo, causam insolação e no outono, quando as folhas
caem, um problema de família o fez esquecer de si e quando se esquece de si, o
inverno tende a ser rigoroso e triste. Mas foi só quando voltou a viver um
inverno de angústia que ele percebeu enfim, completado todo um ciclo, que podia
mudar, que o Cristo o tinha alertado para essa necessidade de caminhar em direção
à piscina, e quem caminha está sempre sujeito as intempéries da natureza. O
homem enfim compreendeu tudo. Era como se ele fosse estrangeiro em terra
estranha e não compreendesse a língua falada. Com o tempo, ele aprendeu o
idioma da vida e nessas horas seus olhos se abriram e ele viu enfim a luz e
tudo ficou claro, muito claro. E seu coração vibrou. Nessa hora ele percebeu
que era novamente primavera.
Ao enxergar as coisas tão
claramente, o homem começou a provocar estranheza em muitos. Os familiares e
amigos não entendiam bem, os doutores da Lei menos ainda e quiseram a todo
custo provar suas teorias de que era impossível ele estar enxergando. No fundo
eles estavam todos cegos e, analogamente ao que disse T.S.Eliot, "em país
de fugitivos, aquele que corre no sentido contrário parece que está
fugindo". Não é fácil enxergar entre cegos, mas é necessário. E o
testemunho do homem chegou até nossos dias.
Lembro que ao final da história
fiquei mudo, reflexivo, emocionado e com o coração vibrando forte...
...
...como agora!