Meu terapêutico exercício
semanal é o de contemplar mais e tentar entender menos, até porque, como me foi
lembrado, segundo Clarice Lispector, "não se preocupe em entender, viver
ultrapassa qualquer entendimento".
Pensando assim, dentre tantos
contos da lua, escolhi um em que a lua me contou em estado quase contemplativo.
Ela me deu poucos detalhes sobre seus dois amigos, por isso os chamarei aqui
apenas de "ela" e "ele".
Se conheceram em um cruzeiro
rumo à Europa, daqueles cruzeiros de muitos dias e muitas noites, com muitas
atividades e atrativos. Eles até se empenharam nos primeiros dias em cumprir a
agenda de atividades. Assim acabaram se conhecendo. Até participaram juntos de
algumas dinâmicas, tomaram parte de um mesmo grupo, mas sempre de modo muito
formal.
Em uma noite, ao acaso,
ficaram a sós na área externa do navio, na verdade um grandioso transatlântico.
Começaram a conversar e ele percebeu que ela era de uma leveza extraordinária.
Ela gostou das histórias que ele contava. Sem perceberem, mas com a lua sob
testemunha, avançaram na conversa madrugada a dentro e só deram conta do passar
do tempo, quando no horizonte um sol preguiçoso começou a nascer, um sol que parecia
querer demorar a raiar, apenas para deixar sua amiga lua presenciar mais daquela
conversa.
E o encanto surgiu aos poucos
mas de forma intensa. O apaixonar-se entre eles foi tão natural que não sabiam
ao certo quando tudo começou. A lua afirma que foi quando ela olhou pela
primeira vez no fundo dos olhos dele e quando ele olhou pela primeira vez nos
olhos dela. A sensação de encaixe foi perfeita.
Mas não se declararam
imediatamente um ao outro. Foram conversando, se olhando, até escrevendo
bilhetinhos. Ela deixou o trecho da música "Certas Coisas" do Lulu
Santos escrito em um guardanapo por baixo da porta do quarto dele. Ele,
exagerado, escreveu até cartas para ela. E os dias e as noites no cruzeiro
foram se passando. O tempo não era relativo, o tempo era eterno.
Na lua cheia se beijaram pela
primeira vez. E ela falou a ele sobre os defeitos que tinha e sobre seu medo de
que eles fizessem ele desistir dela. Ele se apaixonou ainda mais por ela. Não
um apaixonar-se, exceto pelos defeitos. Não um apaixonar-se apesar dos
defeitos. Mas um apaixonar-se pelo que ela chamava de "defeitos" e
prometeu que nunca desistiria dela. Ele, pela primeira vez em toda vida foi ele
mesmo. Contou-lhe coisas que nunca imaginou que contaria a alguém e ficou com
medo que ela desistisse dele por ele ser tão complexo. Ela sorriu e disse que
já o observava muito antes, que muito do que ele disse não lhe era novidade e
que o amava do jeito que ele era. E ele chorou pela primeira vez em muito
tempo, pois se sentiu amado pelo que ele era de fato, sem máscaras, sem
interpretações.
A presença de um bastava tanto
ao outro que não foram mais a nenhuma das atividades do navio até a última
noite da viagem. Contudo, ele sugeriu participarem da última festa, queria lhe
fazer uma surpresa. Chegando ao salão de festas, ele vestido em um elegante
terno, a viu de longe, próxima a um piano. Vestido comprido e elegante em um
tom de rosa mais escuro, com um decote provocante, costas nuas e alças que se
amarravam ao pescoço. Ele se aproximou dela, ela sorriu e, virando-se de costas
pediu que ele desse um laço melhor nas alças e ele, com as mãos trêmulas, fez o
melhor que pôde. Ele então pediu licença a ela e disse que voltava rápido. Ela achou
meio estranho, mas ficou observando-o se dirigir até a orquestra, falar com o
cantor e sorrir de longe para ela. Foi quando a orquestra começou a solar uma
música que ela conheceu antes mesmo da letra começar... "Certas
Coisas"... Ele a convidou para dançar. Ela disse que não sabia e ele disse
que era mais uma coincidência entre eles. Ele completou então dizendo que aquilo não seria
uma dança, seria uma vida e seria para sempre...
Se não houvesse o silêncio
Não haveria luz
Se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...
Cada voz que canta o amor não diz
Tudo o que quer dizer,
Tudo o que cala fala
Mais alto ao coração.
Silenciosamente eu te falo com paixão...
Eu te amo calado,
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz.
Nós somos medo e desejo,
Somos feitos de silêncio e som,
Tem certas coisas que eu não sei dizer...
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...
Cada voz que canta o amor não diz
Tudo o que quer dizer,
Tudo o que cala fala
Mais alto ao coração.
Silenciosamente eu te falo com paixão...
Eu te amo calado,
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz,
Nós somos medo e desejo,
Somos feitos de silêncio e som,
Tem certas coisas que eu não sei dizer...
A lua parou de me contar a
história nesse instante e antes que eu dissesse qualquer coisa ela simplesmente
me disse: "contemple! não tente entender! apenas contemple!"
Nota mental: fazer um cruzeiro!
ResponderExcluir=D